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Erro de cálculo

Estratégia econômica equivocada detonou inquietação popular

ÉRICA FRAGA MARIANA CARNEIRO

RESUMO O crescimento anêmico e a inflação exacerbaram frustração de uma classe média que, nos últimos anos, passou a demandar bens e serviços, mas não percebeu investimentos em áreas como o tráfego urbano e a oferta de energia. Para especialistas, aumento das passagens catalisou a transformação da frustração em ação.

Milhões de pessoas foram alçadas à classe média nos últimos anos. Passaram a demandar carros, viagens de avião, eletrodomésticos, educação. Mas não houve investimentos suficientes para melhorar o tráfego urbano, expandir a capacidade dos aeroportos, aumentar a oferta de energia e a qualidade das escolas.

A frustração com essa falta de contrapartida às expectativas geradas pela expansão da renda foi exacerbada recentemente pelo crescimento econômico anêmico e pela inflação mais elevada.

Esse é o pano de fundo econômico da revolta social que eclodiu nas últimas semanas.

"A precariedade do dia a dia nos centros urbanos brasileiros é uma coisa muito séria e está em parte ligada a essa afluência do período recente", diz o economista e filósofo Eduardo Giannetti da Fonseca, do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa).

Para Giannetti, "o desperdício de tempo e a frustração cotidiana no trânsito" têm um papel mais relevante nas manifestações recentes do que o aumento das tarifas.

CLASSE MÉDIA Segundo o Datafolha, a classe média brasileira representava 63,6% da população em 2011, dividida em três subgrupos (baixo, médio e intermediário). Uma década antes, essa camada que separa os ricos dos excluídos equivalia a 57,3% dos brasileiros.

O aumento da classe média se deveu ao controle da inflação, ao crescimento econômico mais forte, à expansão do crédito e às políticas de distribuição de renda. Nos últimos dois anos, no entanto, três desses motores começaram a fraquejar. A economia perdeu fôlego. Depois de crescer a uma média anual de 3,7% entre 2000 e 2010, o PIB (Produto Interno Bruto) se expandiu 2,7% em 2011 e apenas 0,9% no ano passado.

O ritmo de aumento dos empréstimos bancários despencou de mais de 30% ao ano em 2008 para cerca de 10% atualmente. E a inflação bateu recentemente no limite que o próprio governo considera aceitável.

Por trás da alta geral de preços de 6,5% ao ano, estão aumentos ainda maiores de alimentos e serviços, que corroem a renda principalmente da população mais pobre. "Embora o desemprego não tenha aumentado, a erosão do poder de compra atingiu os consumidores, que também têm lidado com dívidas maiores", diz Robert Wood, analista de América Latina, da Economist Intelligence Unit.

DIAS PIORES A economia do Brasil já viveu dias piores. A realidade atual está distante do cenário de recessão e inflação descontrolada, na casa do milhar, do início da década de 90. Mas a deterioração recente atingiu a população em um momento em que os anseios por melhores condições de vida ganhavam força.

"Tivemos uma oportunidade perdida", afirma Edmar Bacha, um dos formuladores do Plano Real. "Não conseguimos encontrar um caminho, a bonança foi embora e agora temos que lidar com uma realidade econômica mais difícil". Bacha diz que as frustrações recentes foram uma mistura de revoltas contra a "Belíndia" e contra a "Ingana".

Nos anos 70, o economista criou a fábula da Belíndia, na qual descrevia um país com desigualdade social própria da Índia e riquezas, medidas pelo PIB, próprias da Bélgica. Era uma alusão ao Brasil. Mais recentemente, surgiu o termo Ingana, uma conjugação da arrecadação de impostos de padrão inglês e serviços públicos à la Gana.

A revolta atual, acredita Bacha, é uma maneira de protestar contra o país dos privilégios, onde há uma sensação generalizada de que os governantes gastam mais consigo mesmos, enquanto a qualidade dos serviços públicos é baixa.

O aumento das passagens do transporte público foi, segundo especialistas, o catalisador da transformação dessas expectativas frustradas em ação nas ruas.

Para Giannetti, a decisão do governo de postergar a elevação da tarifa do início do ano para agora foi um erro decisivo para a deflagração das manifestações.

A estratégia das autoridades foi tentar evitar que a correção dos preços do transporte entornasse o caldo inflacionário em janeiro, mês em que já havia fortes pressões de reajustes. O problema, segundo Giannetti, é que o cálculo do governo foi malfeito. O aumento adiado acabou culminando com o momento de pico da inflação, quando certo clima de insatisfação popular, expresso na recente queda de popularidade da presidente Dilma Rousseff, já tomava forma.

Esse erro no cálculo das consequências de decisões econômicas se seguiu a outros que, segundo especialistas, também contribuíram para a situação atual. Medidas como redução de impostos e represamento de aumento dos preços de combustíveis favoreceram a explosão da frota de veículos nos últimos anos.

Mas a falta de investimentos para acomodar essa expansão, assim como o maior número de passageiros nos ônibus, trens e metrô, conduziu a recordes de tempo gasto no trânsito nas grandes cidades.

"O fato de as pessoas perderem duas, três, quatro horas por dia no transporte público tem um efeito cumulativo de frustração e de raiva", diz Giannetti.

Bacha observa que essa realidade requer respostas mais custosas e complexas do que os desafios enfrentados no passado recente.

Programas sociais como o Bolsa Família contribuíram para a queda da desigualdade, mas faltam ações para atender às demandas por melhores condições de saúde, educação de qualidade e maior segurança. "Em certo sentido, combater a pobreza é mais fácil do que lidar com a oferta de serviços públicos de qualidade", afirma Bacha.

DESAFIO O discurso adotado pelo governo e endossado por analistas e investidores, de que o Brasil tinha finalmente chegado lá, contribuiu para criar uma sensação de progresso significativo à vista.

"Isso aumentou as expectativas das pessoas, por isso não é coincidência que os protestos tenham vindo após um período de crescimento fraco", diz Wood.

A realidade mais difícil dos últimos meses, inflada pela sensação de que o país ainda precisa melhorar muito, entrou em choque com a imagem do gigante que despertou e sediará os dois mais importantes eventos esportivos do mundo nos próximos anos. "Acho que o esforço de maquiagem para mostrar ao mundo um país que não existe contribui para a revolta das pessoas", afirma Giannetti.

O desafio do governo agora é enfrentar a revolução da expectativa frustrada de um futuro melhor.


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