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MEMÓRIAS QUE VIRAM HISTÓRIAS

Se essa rua fosse dele

Rio de Janeiro, 2001

RAUL MOURÃO

HÁ 34 ANOS meu pai me levou pela primeira vez ao restaurante Nova Capela, na rua Mem de Sá, no bairro da Lapa. Foi um almoço entre pai e filho para conhecer o tradicional estabelecimento que nunca fecha as portas, frequentado por artistas, jornalistas e outras figuras boêmias. Foi nessa ocasião que ouvi falar pela primeira vez do pintor chileno Selarón, que vendia seus quadros de mesa em mesa pelos restaurantes da região.

Em 1990, Selarón se mudou para a Escadaria do Convento de Santa Teresa, deixou de perambular com suas pinturas debaixo do braço e iniciou sua grande obra. Com um balde de cimento, espátula e suas próprias mãos azulejou os 215 degraus da escadaria onde morava e trabalhava. Construiu uma obra de arte pública conhecida no mundo inteiro sem lei de incentivo, sem produtores, sem patrocínio. Contou apenas com a colaboração de sua audiência, pois, ao longo dos anos, centenas de pessoas enviaram azulejos de suas cidades.

A escadaria de azulejos se tornou então uma obra colaborativa, interativa e em permanente processo. (Selarón nunca a considerava pronta; isso era, inclusive, um argumento para ele dizer: "Compre uma pintura minha, que eu preciso concluir a obra"). O artista de rua criou de uma só tacada uma gigantesca obra de arte, um marco urbanístico e um ponto turístico.

Um novo ponto turístico numa cidade já repleta de pontos turísticos. Sob o prisma comercial, a escadaria era seu golpe de mestre: funcionava como um engenhoso chamariz para atrair clientes diariamente ao seu ateliê.

Em 2001, meu ateliê começou a funcionar na rua Joaquim Silva e nos tornamos vizinhos. Nesse período de convivência tivemos vários encontros, tomamos dezenas de cervejas, escutei muitas histórias e fiz centenas de fotos. A maior parte delas é de turistas fotografando a escada, mas fiz alguns retratos do artista trabalhando ou simplesmente observando sua obra e seu público.

Selarón era um sujeito delirante, compulsivo e megalomaníaco. Considerava-se o maior artista do mundo e era comum vê-lo afirmar sua superioridade em relação a Leonardo da Vinci, Michelangelo, Picasso, Gaudí, entre outros. Achava a estátua do Cristo Redentor no Corcovado uma obra menor e menos importante que sua escadaria.

Em uma noite de setembro de 2012, eu estava tomando cerveja no bar do Ximenes, na esquina da rua Joaquim Silva com a Teotônio Regadas, junto dos artistas paulistas Marcelo Cidade e André Komatsu, que acabavam de visitar o meu ateliê.

Conversávamos sobre a escadaria e sobre Selarón, quando o próprio artista passou esbravejando sobre como os japoneses haviam destruído a Capela Sistina.

Pedi explicação e então tivemos contato com sua teoria de que a restauração da pintura do teto da capela, realizada na década de 1980, com o patrocínio de japoneses, havia descaracterizado a obra de Michelangelo. Emendou perguntando ainda se Picasso havia feito uma escultura tão importante quanto sua escadaria e espinafrando Gaudí por ter usado pouco vermelho no parque Güell, de Barcelona.

Selarón amava o Rio e a Lapa. Sua intenção era clara: ao azulejar sua rua, desejava que esse gesto reverberasse pela região na forma de outras melhorias.

Infelizmente isso nunca aconteceu. Na manhã do dia 11 de janeiro de 2013, há quase um ano e meio, seu corpo foi encontrado carbonizado por volta das 7h20, na escadaria que hoje todos chamam de Selarón. Morreu sobre sua própria obra. No dia seguinte à morte, uma estranha tese de suicídio começou a circular nos jornais, sites e televisão e a investigação policial tomou esse rumo. Assim como muitos moradores da região, não acredito nessa hipótese.


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