Descrição de chapéu

Em Los Angeles, mostra 'Axé Bahia' cede ao fetiche do corpo negro 

Em cartaz até abril, exposição ilumina, mas romantiza, arte afro-brasileira

análise

Silas Martí
Los Angeles

"Jexus." Enquanto Salvador treme ao som do Carnaval, essa palavra que junta o filho do Deus católico com o Exu do candomblé estampa em letras vermelhas as paredes brancas do Museu Fowler, em Los Angeles, na maior mostra do que entendem como arte afro-brasileira já realizada nos Estados Unidos.

Dos trabalhos mais simples e poderosos da exposição batizada "Axé Bahia", o estêncil de Àlex Ìgbó é um contraponto a obras ali que falam em separação e preconceito.

Seu híbrido de divindades sugere fundir, em vez de apartar, mas ironiza o mito da democracia racial ainda em vigor num Brasil mestiço usando os mecanismos da arte de rua --é ao mesmo tempo afirmação, denúncia e protesto.

Detalhe de "Delírios de Catarina" (2017), obra de Caetano Dias que integra a exposição "Axé Bahia", em Los Angeles (EUA)
Detalhe de "Delírios de Catarina" (2017), obra de Caetano Dias que integra a exposição "Axé Bahia", em Los Angeles (EUA) - Andrew Kemp/Divulgação

Na contramão desse gesto, o abre-alas da mostra é um aquário criado por Ayrson Heráclito, um dos nomes mais relevantes no panorama brasileiro atual, em que uma camada de azeite de dendê num tom laranja radioativo não se mistura com a água salgada no fundo do tanque.

Seria uma alusão a feridas históricas que não se fecham com o tempo e à travessia do Atlântico por navios negreiros que despejaram na costa baiana um povo destinado aos horrores da escravidão.

Num vídeo, que estreou na última Bienal de Veneza e agora está em Los Angeles, Heráclito aparece fazendo um ritual de limpeza num porto do Senegal de onde saíram escravos traficados para o Brasil e também em Salvador, onde eles foram parar.

Seus gestos delicados contrastam com a natureza macabra de um trabalho de Caetano Dias na sala ao lado, onde dezenas de cabeças de açúcar fundido parecem ter rolado por debaixo de uma mesa de lados desiguais --metade do móvel poderia estar na casa-grande e a outra metade parece saída da senzala.

VERTIGEM

Um sentimento de culpa e impotência atravessa esses trabalhos e sublinha outra estranha vertigem --por mais que ilumine a arte negra da Bahia, a mostra não deixa de transformar em fetiche o corpo negro, a capoeira, as baianas de saias brancas rodadas.

O modernista Rubem Valentim, um dos artistas históricos ali e um dos poucos negros a vencer a barreira racial que fez das vanguardas artísticas no Brasil uma coisa de burgueses brancos, é celebrado pela forma como infiltrou símbolos do candomblé na matriz geométrica moderna.

É como se a potência inquestionável de sua obra se devesse toda a um ato de sabotagem ou tráfico subversivo de uma iconografia marginalizada para dentro do movimento que anunciava em grande medida um futuro maquinal, clean e branco.

Valentim não está mal representado nem deslocado na mostra, mas torna gritante a impermeabilidade do establishment artístico brasileiro a artistas negros como ele.

Outros nomes --brancos-- da arte do país também estão na mostra com visões erotizadas, exuberantes ou até românticas da negritude.

Pierre Verger, Mario Cravo Neto e seu filho Christian Cravo retratam homens negros contra o horizonte fulgurante de Salvador, a pele quase prateada, e mães de santo em transe comandando terreiros.

Magnéticas, as obras sustentam o imaginário de uma Bahia negra e fantástica, capaz de agradar a plateia local e levantar questões sobre relações fraturadas e doídas dos EUA com seus artistas negros.

Num alerta contra a negritude idealizada e ultrajada, Tiago Santana raspou os cabelos formando a palavra Cabula, bairro de Salvador onde 12 jovens negros foram mortos pela polícia há três anos. O vídeo austero do artista contra fundo branco encerra a mostra e desmonta sua queda por delírios e ilusões.

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