O ambiente enfumaçado, os violinos e o cenário abreviado e simbólico já apontam a tragicidade
Não é de estranhar que a situação seja privilegiada no universo rodriguiano, comenta Sábato Magaldi (1927-2016). "Ela contém muitos elementos psicanalíticos e poéticos, além de apelar para o mito de um sangue fatalizar-se por outro sangue", escreve o crítico, que se debruçou sobre a obra de Nelson Rodrigues.
Trata-se do motivo de duas irmãs vinculadas ao mesmo homem; se ele aparece em vários textos do autor, em "A Serpente" torna-se a única trama.
Tentando salvar a irmã Lígia, que ameaça se matar diante da impotência do marido, Guida lhe oferece uma noite com Paulo, seu próprio marido, para que a irmã perca a virgindade e se convença a continuar vivendo. Lígia e Paulo se apaixonam, é claro; Guida tenta retomar o controle da situação, sem sucesso.
O desejo, a paixão, a desmedida são as serpentes do título dessa peça curta, a última de Nelson, de 1978. Tudo se passa em um único ato, de grande concentração de ações e síntese nos diálogos, levando a um crescendo de tensão.
Os exageros e a intensidade propostos pelo diretor Eric Lenate para o texto mantêm o espectador teso na montagem em cartaz no teatro Faap.
O ambiente enfumaçado, os violinos da trilha sonora e o cenário abreviado e simbólico --uma única cama engaiolada-- já apontam a tragicidade da cena. Chegam então as personagens, em uma dança assertiva que não deixa dúvidas quanto à caminhada rumo à fatalidade.
As mulheres, destaque na montagem, invadem o palco sem hesitação, e o espelhamento entre as irmãs --na trama, mas também no figurino e no jogo corporal em cena-- carrega o espetáculo.
É especialmente bonita e terrível a fala de Lígia (Carolina Lopez) e Guida (Fernanda Heras), cantos de lamentação que esticam os diálogos entrecortados de Nelson e não deixam dúvidas quanto ao tom dessa "tragédia carioca", na classificação de Magaldi.
Os homens patinam entre personagens femininas. Décio ganha uma personalidade infantilizada, também quando vence sua impotência com a "crioula" (Mariá Guedes).
Nos apartes que dão algum aporte psicológico aos personagens, Décio escapa da superficialidade, encorpando-se ainda mais pela expressividade de Paulo Azevedo. Já Paulo (Juan Alba), se é agente na fatalidade, é também um joguete das irmãs, cuja relação é central na peça.
"Supremo sacrifício, generosidade da irmã --ou que outras conotações revelara o oferecimento?", se pergunta Magaldi quanto à proposta de Guida, seu erro trágico.
"Homossexualidade por procuração? Desejo de provar-se superior? Apaziguamento de culpas antigas?" Nelson não desvenda o mistério, conclui o crítico, e Lenate investe nessa virtude do texto.
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