À espreita de João Gilberto

Colunista passa dia em frente ao prédio onde o cantor vive recluso, no Rio, e de onde pode ser levado após decisão judicial 

Alvaro Costa e Silva
Rio de Janeiro

Faz silêncio na rua General Urquiza, no Leblon, sobretudo no trecho mais próximo à orla. De vez em quando passa um motorista apressadinho, buzinando. Ou um velho vendedor de picolés da marca Sol da Praia —cuja fábrica fica na distante Belford Roxo, na Baixada Fluminense—, apregoando sabores de goiaba, uva, limão, açaí. No seu apartamento do 13º andar, o cantor João Gilberto não escuta nada disso. As janelas estão sempre fechadas, as cortinas abaixadas.


É uma quadra residencial, com a via arborizada. Comércio só na praça Antero de Quental, a poucos metros. Alguns dos prédios são bem antigos, de três e até dois andares. Imagina a cobiça que devem despertar. O metro quadrado construído ali é um dos mais caros do Rio.


O vaivém é típico da zona sul em dia de sol, como no último sábado (7). Casais passeando de bicicleta, moradores levando o cachorro para fazer xixi, moças de canga a caminho do mar (23 graus a temperatura da água, ondas de até meio metro), rapazes descalços desafiando o chão quente. Na volta das aulas, estudantes trocando figurinhas do álbum da Copa. E muita, muita gente falando no celular, não raro aos berros. Fora as buzinas, é o maior barulho que se ouve nas redondezas. Mas João Gilberto não se importa. 

Diante do edifício onde ele mora, um entregador de supermercado espera a ordem do porteiro para descarregar três carrinhos cheios de compras. À tarde, haverá uma festinha infantil, bolas coloridas enfeitam o parquinho na parte de trás do condomínio. João não está nem aí.


No prédio tem um apartamento para vender, semelhante ao do cantor: 145 metros quadrados, três quartos (uma suíte), três banheiros, duas vagas na garagem. Valor: R$ 4,2 milhões. 


Nos botecos mais tradicionais —o Bracarense e o Clipper—, o assunto dominante é Lula em três atos: o churrasco, o discurso, a prisão. O intenso tiroteio entre traficantes na vizinha favela do Vidigal entra na conversa como a cota de violência a que o carioca tem direito diariamente. Em terceiro plano, as apostas para a decisão do Estadual entre Vasco e Botafogo que aconteceria no domingo. Do baiano famoso, ninguém fala.


Apesar de morar no Leblon desde os anos 1990, João Gilberto não é um personagem do bairro (como Tom Jobim foi de Ipanema, por exemplo). Durante todo esse tempo, manteve hábitos de reclusão monástica. Quase sempre de pijama e chinelos, sua rotina era acordar por volta das cinco horas da tarde, almoçar às 11 da noite (alguns entregadores de restaurantes o viram de relance, ao abrir a porta), dormir quando entrava a manhã. A TV ligada, sem som. Sair de casa uma vez na vida, outra na morte.

Interdição judicial

Se não fosse o noticiário recente, muitos moradores seriam capazes de jurar que ele vivia nos Estados Unidos. Hoje, quem passa em frente ao prédio da General Urquiza espera o pior: ver João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, o maior artista brasileiro vivo, ser levado à força por enfermeiros, após ter a porta do apartamento arrombada


Já autorizada pela Justiça, a entrada no local seria a última maneira de ele ser submetido a exames e ser medicado com orientação médica (já que se recusa a fazê-lo). Aos 86 anos, muito magro, cabelos ralos, gestos lentos, habitando em condições precárias, João ainda enfrenta uma situação financeira caótica. A filha Bebel quer cuidar do seu patrimônio, mas está em briga com o irmão, João Marcelo Gilberto, e a ex-mulher de João, Claudia Faissol. 


No Brasil e principalmente no exterior, jamais faltaram convites para João Gilberto se apresentar fazendo o que sabe como ninguém: cantar e tocar violão. Se quisesse, faria um show por dia, botando gente pelo ladrão. Ele nunca quis. Quando muito e quando comparecia, adotou uma dieta rigorosa de concertos. Agora é tarde. 


Sua situação não pode ser comparada à de grandes artistas do passado que, com o tempo, foram esquecidos e abandonados. Para citar um nome próximo a João (chegaram a dividir o mesmo apartamento) e influência determinante para a formação do seu estilo: o grande cantor Lúcio Alves morreu à míngua. Se apelarmos para um exemplo mais trágico, quem lembra o fim das irmãs Linda e Dircinha Batista, rainhas do rádio e preferidas de Getúlio Vargas?


Ao saber que João Gilberto deve R$ 2 milhões —só para efeito de comparação, um levantamento da Polícia Federal mostra que todas as operações financeiras investigadas pela Lava Jato somam cerca de R$ 8 trilhões—, o português Miguel Esteves Cardoso, em sua coluna no jornal Público, sugeriu que o Estado deveria pagar os credores. Revestida do pior paternalismo, a ideia não é nova. Tampouco resolve o problema. 


O cronista foi mais feliz ao fazer o seguinte comentário: “O mundo inteiro tem uma imensa dívida de prazer para com João Gilberto. Temos a obrigação não só de ajudá-lo mas de ajudá-lo de maneira a que ele não saiba que o ajudamos. O nosso dever, nascido dessa nossa dívida (essa sim gigantesca demais para alguma vez ser paga) é sossegá-lo, protegê-lo, deixá-lo em paz. Basta ouvi-lo para saber como”.


De preferência, em silêncio. Ao contrário do que fizeram alguns novos ricos, com ouvido de lata, no tristemente histórico show do Credicard Hall de São Paulo, em 1999. Aos apupos e troças, o cantor respondeu pondo a língua de fora e improvisando ao violão uma canção de escárnio e maldizer: “Vaia de bêbado não vale”. Naquele tempo, João Gilberto ainda tinha atitude.

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