Descrição de chapéu

Guerras culturais ocupam lugar de partidos falidos

Tradicional política partidária deixa de dar conta das preocupações reais dos cidadãos

Vinicius Torres Freire
São Paulo

O que mais preocupa as pessoas do mundo? Todos os meses, o instituto Ipsos faz essa pergunta a mais de 20 mil pessoas em 28 países. Guerras culturais, questões de gênero, identidade nacional ou discussões comportamentais e estéticas, são debates quentes, dos Estados Unidos ao Brasil de agora. O que as pessoas dizem nas pesquisas?

Em fevereiro, as maiores preocupações dessa amostra do mundo eram corrupção política e financeira, desemprego, pobreza e desigualdade, com algo entre 34% e 35% das preferências, cada uma.

Terrorismo? Em um distante nono lugar, com 14%. Controle da imigração? Décimo lugar, também com 14%. Ascensão do extremismo aparecia em 15º lugar, com 8%.

As alternativas de resposta são limitadas pelos pesquisadores. Países ricos da Europa, asiáticos e latino-americanos dão respostas bem diferentes. Mas mesmo nos países onde as guerras culturais estão no centro do debate político, como nos Estados Unidos, ou em que a imigração é assunto eleitoral decisivo, como na Europa, o cidadão pelo menos diz ter outras preocupações principais.

Na Alemanha, 54% se preocupam com pobreza e desigualdade. Nos Estados Unidos, 34% se atormentam com o crime. Na França, o desemprego lidera, com 40%; na Itália, com 66%. Saúde é a questão para 42% dos britânicos.

Assuntos como desemprego e crime podem ser tratados como efeito de uma ameaça estrangeira: imigrantes ou importação de mercadorias do exterior. O debate político é fluido, porém, e comportamentos que parecem ocupar o debate entre os cidadãos mais engajados, nas redes sociais ou nas ruas, podem não refletir tendências de comportamento, medidas pelas pesquisas ou mesmo manifestas em votos.

Brasil

Nos dias em que estavam quentes as controvérsias sobre exposições de arte chamadas de imorais, no ano passado, o Datafolha concluía mais uma pesquisa sobre a adesão a ideias de direita, centro e esquerda no Brasil. As classificações baseiam se nas respostas a questões sobre comportamento e economia.

Os dados do Datafolha mostravam aumento da tolerância com comportamentos sexuais diversos (comportamento homossexual “deve ser aceito por toda a sociedade” para 74%), em relação à pesquisa de 2014. Notava-se menos dureza em relação a crimes (menor aceitação da pena de morte, por exemplo, ora aceita por uma minoria). Havia grande receptividade de imigrantes pobres que viessem trabalhar (70%).

O Datafolha não parecia captar uma onda conservadora, a qual, no entanto, fazia barulho em meios de comunicação e, em particular, nas redes sociais.

As opções e as competências da política partidária e, por assim dizer, midiática podem dar mais ou menos ênfase aos temas das chamadas “guerras culturais”, que não parecem em si dominantes, ao menos no retrato oferecido pelas pesquisas de opinião.

‘Hommage à Jean-Sébastien Bach’ (1973), de Vasarely 
‘Hommage à Jean-Sébastien Bach’ (1973), de Vasarely  - SzépművészetiMúzeum/Museum of Fine Arts, 2018

Estados Unidos

Barack Obama deixou o governo americano com taxas de aprovação em torno de 60%, das maiores dos presidentes americanos. Foi sucedido por Donald Trump, que tornou ainda mais intensas as guerras culturais americanas.

O foco em tais assuntos foi tido como causa da mínima vitória republicana nas urnas. Um ano e meio depois da eleição, são ainda motivo de debate acirrado e recriminações no derrotado Partido Democrata e entre a esquerda.

A ênfase dos democratas em direitos identitários, de mulheres, negros, LGBTQ etc. teria deixado de lado os problemas da classe trabalhadora branca depauperada? Ainda que tenha sido, fazia menos de quatro anos Obama era reeleito; Hillary Clinton teve maioria dos votos populares (perdeu no Colégio Eleitoral dos estados). Ainda que as guerras culturais dividam regiões, partidos, mídia e classes nos Estados Unidos, resultados das pesquisas e eleições indicam que especificidades da política partidária e de uma campanha eleitoral podem fazer diferença importante.

Política envelhecida

Os assuntos “que mais preocupam as pessoas” no mundo, segundo a pesquisa Ipsos, não variaram muito desde 2010. O desemprego perdeu alguns pontos, mas continua no pódio, ao lado de corrupção, pobreza e desigualdade. As opiniões variam muito em cada país, alguns deles por exemplo muito abalados por ataques terroristas recentes, como Turquia e França. O “declínio da moralidade” preocupa especialmente os asiáticos, China, Japão e Coreia, além dos Estados Unidos, estranho ocidental nesse ninho.

Os dados das pesquisas não indicam tendência geral e ainda menos unívoca de preocupação individual com questões identitárias. Partidos e movimentos sociais vocais têm, no entanto, tido sucesso em traduzir problemas sociais por meio dessas divisões da sociedade. Mas esse não parece um destino inevitável, mas talvez indício forte de que o modo tradicional de fazer política partidária deixou de dar conta das preocupações reais dos cidadãos. Algo ocupou o lugar dessa política envelhecida e sem conexões sociais fortes.

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