Portuguesa Eugénia Melo e Castro canta 'Mar Virtual' no Sesc Ipiranga

Cantora une a sensibilidade da música popular com a densidade do experimentalismo poético

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Eugénia Melo e Castro no mirante do Sesc Paulista - Rafael Roncato/Folhapress
Jorge Henrique Bastos
São Paulo

Após mais de 30 anos de carreira, desde que lançou o primeiro disco no início dos anos 1980, a cantora portuguesa Eugénia Melo e Castro iniciou uma atuação que a levou a trabalhar com os mais destacados músicos de Portugal –Zeca Afonso, Júlio Pereira, Jorge Palma– e do Brasil –Chico, Ney, Caetano, Milton, Tom e um longo etc.

Ela aporta mais uma vez deste lado do Atlântico, só que com um projeto surpreendente.

A artista chega para apresentar nesta quinta (17), no Sesc Ipiranga, o lançamento do seu último trabalho, o álbum  “Mar Virtual”, totalmente inspirado na obra de seu pai, o poeta Ernesto Melo e Castro, mentor da poesia experimental portuguesa, aquela que promoveu o diálogo direto com a poesia concretista brasileira.

Para Eugénia, é a concretização de um processo com história, mas já com vestígios do que a obra paterna deixava em si: “Antes de gravar meu primeiro disco, em 1981, tinha um grupo de poesia que se chamava Ânima. Minha casa já era uma espécie de polo que reunia muita gente, inclusive brasileiros. Tínhamos aí um grupo que interpretava poesia concreta, com direção do meu pai. Infelizmente, naquela época não havia internet. Não gravamos, e muitas vezes esquecemos de filmar. Mas fizemos uma série de espetáculos em Portugal, em meados dos anos 1970. Portanto, nós 'interpretávamos' poesia concreta, em forma de teatro, mas com a presença de muito instrumental”.

A trupe concretista a que pertenceu lhe rendeu a aproximação à obra do pai, e o início das suas experiências dramatúrgicas, já que Eugénia acabou por fazer teatro, chegando a trabalhar numa novela, no Brasil. Mas a música já conquistara a cantora e compositora nascida na Covilhã, norte de Portugal, no mesmo ano em que, no Brasil, a bossa nova dedilhava novos acordes. Sua liberdade criativa vem daí: “Desde sempre tenho essa liberdade, essa intenção muito rígida sobre a importância das palavras, o som das palavras, que sempre persegui. Isso é marca do meu pai”.

Uma empreitada como a que se apresenta em “Mar Virtual” normalmente se faz na juventude, mas EMC resolveu encarar o desafio já mulher madura e após um percurso diversificado. Sem dúvida, Eugénia foi quem inaugurou a troca de figurinhas entre artistas portugueses e brasileiros. Ela teve essa percepção antecipatória do intercâmbio, tal como seu pai estabeleceu o diálogo entre a poesia Concreta paulista e a poesia experimental portuguesa.

Ao explorar a obra vanguardista paterna, Eugénia une a sensibilidade da música popular com a densidade do experimentalismo poético. Mas faz isso com um equilíbrio explícito. Afinal, traz na veia essa herança, tendo em conta que seus pais são escritores. A colaboração paterna já havia surgido uma vez: "Foi no 'Lisboa Dentro de Mim' (1993), com a música “O Homem que Canta e Vê” [presente neste trabalho], poema que foi musicado pelo pianista Mário Laginha. Mas só isso. Depois tudo foi se consolidando cada vez mais dentro de mim, fui lendo, estudando”.

Até que, em 2017, resolveu enfrentar de vez o experimentalismo que se vislumbrava no seu horizonte pessoal: “Tudo o que sempre fiz na minha carreira, na vivência artística, foi feito a título experimental. Nunca sabia o que ia acontecer, minha vinda para o Brasil, em 1981, para encontrar artistas brasileiros, era um pouco experimental. Nunca me conformei com coisas fáceis. Naquela altura, achava que era um desafio, um experimento”.

A própria decisão de exercitar um CD composto sob o signo da experimentação revela bem essa atitude, pois a cantora consegue arrebatar um espaço peculiar com esse trabalho, sobrepondo os obstáculos. “A independência e a ousadia têm um preço que é um pouco de solidão. Fiz algo que é só meu. Procurei não fazer coisas óbvias. Busquei sempre uma escolha poética, sempre por parâmetros bem próprios, que é o caso de 'Mar Virtual'”.

Mesmo indo na contramão, Eugénia arquitetou um xadrez musical ao mesmo tempo lírico e contemporâneo, arrebatando um espaço só seu. Ao se aliar ao pianista Emílio Mendonça, a força motriz do trabalho se expõe com toda expressividade. Eugénia desbrava melodias e tons que, à partida, não se acreditava que conseguiria concretizar. E consegue-o.

“Entrei no universo experimental, mas as nuances jazzísticas do Emílio (Mendonça), deram-me a segurança. Então falei a mim mesma: acho que tenho um parceiro que tem tudo a ver com o projeto, que desde o início imaginei com piano e voz.”

A cantora trabalhou em parceria estreita e a suscetibilidade de Emílio Mendonça conduziu todo o processo de maneira segura, mesmo que no começo a dificuldade alertasse para o desafio.

“Peguei algumas coisas e mostrei ao Emílio. Ele me olhou e disse: você tem certeza que quer musicar isso? Então me pediu para eu lhe descrever imagens, para que descrevesse o que eu imaginava para cada poema”.

Ela passou a exprimir sensações objetivas sobre poemas concretos: “Foi como se eu lhe mostrasse um videoclipe, explicando o que cada texto produzia em mim.”

As pistas imagéticas da cantora causaram o efeito esperado e o músico completou sua demanda com um resultado que paira entre a elegância expressiva e a experimentação intensa. O que a artista fez foi mergulhar e emergir cantando a poesia concreta à sua maneira, sem minimalismos.

“Quis fazer algo de forma que fosse escutada, para que as pessoas pudessem ouvi-la, entendê-la, na sua concretude, está disfarçada de fácil, mas não é.”

As 14 faixas mostram que EMC soube dosar o conteúdo, procurando sempre a originalidade, evitando o excesso de experimentalismo.

“Pensei fazer algo fugindo de algumas evidências. Como a poesia é altamente complexa, optei por algo musical que amenizasse isso, para que as pessoas percebessem de fato as palavras, e não ficassem perturbadas com sons. Foi esse equilíbrio que procurei entre o hermético da poesia experimental, mas mostrando-a de forma acessível”, explica.

Atravessar territórios com tais feições é sempre um risco, mas a cantora portuguesa sabia bem o que procurava. Nesse ponto a artista lusitana foi muito ousada. Soube filtrar sua herança, as influências que recebeu por via de seu pai, já que conviveu desde jovem com vários artistas de vanguarda.

“O Jorge Peixinho (músico português experimental, já falecido) vivia em minha casa. Lembro de todos os amigos de meu pai, do Haroldo de Campos que o visitou várias vezes. Nasci nessa sopa. Isso me deu certa liberdade.”

Era inevitável que essa convivência a tenha conduzido às margens da ousadia, pois soube absorver o essencial com seu olhar peculiar.

“Isso tudo marca de alguma forma. Lembro quando era pequena, ao ir para a escola, eu já conhecia as letras, já tinha intimidade com elas, estavam penduradas no teto, pintadas no chão, pregadas na parede, misturadas pelas mesas, por todo lado. Portanto, quando me explicaram que o alfabeto era linear, se devia ler A, B, C, D, entendi então que o alfabeto era como um poema concreto para mim.”

"Mar Virtual" se traduz numa atitude corajosa, arrebatando um espaço singular em seu percurso. É uma exceção, em meio a uma obra que foi a primeira a desbravar a possibilidade de promover o encontro entre duas tradições musicais que falam português.

“Nunca ando a favor do vento, estou a favor da minha corrente. Isso não é para provocar, é mais por gosto próprio.”

Eugénia Melo e Castro - Mar Virtual

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