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Cinema Oscar

Unilateral, 'Impeachment, o Brasil nas Ruas' parece peça de propaganda

Documentário que narra a queda de Dilma pelo lado dos pró-afastamento está disponível online

Rubens Valente

Impeachment, o Brasil nas Ruas

  • Onde No streaming
  • Produção Brasil, 2017
  • Direção Beto Souza e Paulo Moura

Aos 27 minutos do documentário “Impeachment, o Brasil nas Ruas”, Paulo Moura, codiretor do filme, aparece ele próprio com a camisa da seleção e a bandeira nacional amarrada ao pescoço, à maneira de uma capa de super-herói, discursando em um carro de som a favor do afastamento da presidente Dilma Rousseff. 

A legenda, que o identifica só como ativista, acaba resumindo bem o documentário.
Ele assina direção, produção e roteiro do filme ao lado de Beto Souza, co-diretor de “Netto Perde Sua Alma” (2001).

Do primeiro ao último minuto, o objetivo fica bem claro: oferecer o ponto de vista dos grupos anti-Dilma e anti-PT. Contudo, a versão unilateral foi construída de tal forma, sem espaço para nuances ou dúvidas, que a aproxima de uma propaganda política.

Beto Souza e Paulo Moura, diretores do documentário "Impeachment - O Brasil Nas Ruas", durante a pre estreia realizada na sede da Fecomercio
Beto Souza e Paulo Moura, diretores do documentário "Impeachment - O Brasil Nas Ruas", durante a pre estreia realizada na sede da Fecomercio - Adriano Vizoni/Folhapress

Há as frases de efeito e cartazes “por um Brasil melhor”, o “anseio por mudança”, Lobão tocando o Hino Nacional, as pessoas nas ruas sorrindo, as falas dos congressistas na votação do impeachment. Em breve veremos algo semelhante no horário eleitoral da TV.

A produção é marcada pela ausência de um contraponto —nenhum dos entrevistados fala em defesa da ex-presidente— e pela forma sistemática com que protege os líderes dos movimentos pró-impeachment, omitindo dados do passado e do presente.

Fatos políticos que cercaram o processo e que poderiam empanar o brilho dos manifestantes são escamoteados.

Ao mostrar o Movimento Brasil Livre entregando o seu pedido de impeachment nas mãos do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), o filme salta todo o escândalo das contas na Suíça que levaria à queda do deputado e sua decisão de dar sequência a um outro pedido de afastamento só após ter sido abandonado pelo PT no Conselho de Ética da Câmara. 

As conversas gravadas por Sérgio Machado que indicam uma conspiração política para derrubar Dilma também inexistem no filme.

Na entrevista com a advogada Janaína Paschoal, o documentário decidiu não incluir suas eventuais explicações sobre ter recebido R$ 45 mil do PSDB para fazer um parecer pró-impeachment antes do início do processo. 

O pagamento não representou ilícito, mas esquecê-lo é, no mínimo, poupar de críticas um dos lados do conflito.

Há imprecisões ao longo de “Impeachment”. Logo no começo ele tenta sequestrar os protestos de junho de 2013, ao abrir um bloco com a seguinte informação: “2013. O início”. 

Sabe-se que as manifestações daquele ano foram uma cacofonia, uma explosão sem controle, na qual Dilma foi, no máximo, um dos alvos. Mesmo que alguns entrevistados depois diminuam ou excluam a relação entre os fatos de 2013 e 2016, a sugestão fica no ar.

Em outro ponto, o filme anuncia que “depois de oito meses sob pressão, OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] muda sua direção e adere ao impeachment”, insinuando que o então presidente da Ordem, Marcus Vinicius Coelho Furtado, caiu em consequência dos protestos. 

Na verdade a eleição da OAB estava marcada havia muito, obedecendo o revezamento trienal de seus presidentes. 

Embora prometa trazer ao espectador um país “nas ruas”, o documentário concentra suas energias numa sucessão de depoimentos gravados depois de tudo ter acontecido. 

É difícil entender por que, tendo milhares de pessoas ao seu alcance para ouvir durante os protestos, o documentário tenha optado por depoimentos quase todos sem alma e sem vibração, registrados em ambientes controlados de escritórios e casas.

As entrevistas dos líderes dos movimentos anti-Dilma são falas mecânicas, sem autocríticas, sem hesitações.

Quando o filme respira um pouco de vida, produz humor involuntário. Heduan Pinheiro, do Movimento Brasil Melhor, diz que certa feita se sentou no caminhão de som, durante um protesto, e fez uma reflexão sobre os “vários momentos e o que ocorreu ao longo dessa trajetória”. 

“Foi um momento nostálgico e que me fez lembrar de algumas situações que valem a pena ter passado, sabe?”. E corta. Que situações foram essas não é possível saber.

A vida dessas pessoas, de onde vieram e de que forma exata se organizaram nos protestos poderia, claro, ter resultado um bom documentário. Há uma curiosidade legítima ainda não esgotada sobre a origem dos líderes dos protestos e suas conexões políticas.

No filme, contudo, elas permanecem obscuras. 

O máximo oferecido são descrições como esta: “Olha, eu sempre gostei de política. O meu avô era espanhol e ele sempre abria o jornal, quando eu era pequena, me fazia ler o jornal e discutia política comigo. Eu cresci gostando de ver esse tema, mas nunca me envolvi porque eu não sou uma pessoa política, muito pelo contrário” (Meire Lopes, do Revoltados Online).

As lacunas tornam “Impeachment” o lado avesso do documentário “O Processo”, que estreou no último dia 17. Neste, porém, Maria Augusta Ramos construiu com mais talento sua narrativa--para usar uma palavra da moda. 

“O Processo” é, na essência, pró-Dilma, mas também esconde ou distorce o clima político que cercou o afastamento da petista, incluindo os protestos de rua de 2015. 

É provável que, como sempre, o passo mais próximo da verdade esteja em algum ponto entre os dois extremos.

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