Filme político brasileiro, 'Domingo' é aplaudido em Veneza

Longa aborda divisões sociais e se passa no governo Lula; faroeste francês também é destaque

Bruno Ghetti
Veneza

Um único dia em um sítio pode ser o suficiente para montar um painel das contradições comportamentais da sociedade brasileira. Essa é a proposta de "Domingo", dirigido pelos brasileiros Fellipe Barbosa (de "Casa Grande") e Clara Linhart e aplaudido no Festival de Veneza.

Exibido na mostra independente Jornada do Autor, a trama se passa em 2003, na data em que Lula assume a Presidência. Em uma casa de campo, uma família burguesa se reúne para um churrasco. A matriarca (Ítala Nandi, esplêndida) tem medo do destino que esse governo pode reservar a sua classe social.

Cena do filme Domingo, de Fellipe Barbosa e Clara Linhart, com Itala Nandi, Ismael Caneppele, Camila Morgado, Augusto Madeira. Exibido no Festival de Veneza
Cena de 'Domingo', filme de Fellipe Barbosa e Clara Linhart exibido na mostra independente Jornada do Autor no Festival de Veneza - Divulgação

Nem todos da família pensam como ela, embora um de seus empregados também ache o cúmulo um "comunista" no poder. Mas ninguém ali parece dar importância: seguem com o churrasco, cada um com suas idiossincrasias, a despeito de acontecimentos inusitados que ameaçam a solidez daquele meio familiar.

O filme é político, mas sem o peso e a virulência que muitos cineastas de esquerda não conseguem evitar. É uma comédia cáustica, que progride lentamente para tons absurdos —adequados para ilustrar o quanto a sociedade brasileira pode ser absurda e surreal.

Começa com o bolero "Solamente una Vez", repetido no longa algumas vezes, sem razão muito clara. Seria uma alusão ao governo Lula, a única vez que o Brasil teria "amado na vida", como diz a letra?

"Queria que tivesse uma cantoria, com a família unida. Pedi que Ítala levasse uma música que ela gostaria de cantar, e ela levou essa", diz Linhart.

Os vários personagens, quando interagem, revelam muito sobre elite, proletariado e classe média do Brasil. E surpreendem a todo instante —quando esperamos que ajam com violência, são inusitadamente compreensivos.

"Para que propósito mostrar a violência, a estupidez humana?", diz Barbosa. "E por que os personagens pobres têm que ser mais uma vez oprimidos?", diz, referindo-se às demandas de representação positiva de grupos historicamente oprimidos —o que o filme faz, sem parecer forçado.

Como grande parte dos filmes sobre os modos de ser da elite e de seus empregados, o longa faz um aceno a "A Regra do Jogo" (1939), de Jean Renoir. "Cada um tem suas razões", dizia o francês. E a dupla Barbosa/Lenhart, ao não demonizar por completo nenhum dos personagens, mostra compreensão da moral renoiriana.

"A referência surge em nosso filme naturalmente. Não gostamos de desumanizar, porque ninguém na verdade é um monstro. Cada um, de fato, tem suas razões", diz Linhart. "Na verdade, até existem monstros", afirma Barbosa. "Mas a gente prefere não fazer filme com eles."

Jake Gyllenhaal em cena de ‘The Sisters Brothers’; o western do francês Jacques Audiard foi elogiado e está na disputa pelo Leão de Ouro Divulgação
Jake Gyllenhaal em cena de 'The Sisters Brothers'; o western do francês Jacques Audiard foi elogiado e está na disputa pelo Leão de Ouro - Divulgação

Outro destaque do festival, este na briga pelo Leão de Ouro, foi "The Sisters Brothers", improvável incursão do diretor francês Jacques Audiard pelo western. Narra a história de dois irmãos mercenários (John C. Reilly e Joaquin Phoenix) atrás de uma fórmula química capaz de facilitar a busca por ouro no velho oeste.

Audiard reconhece que nunca foi um admirador de faroestes. "Não conheço muito, nem sei se sou fã do gênero", disse, em encontro com jornalistas.

A falta de afinidade foi positiva, já que o filme contraria clichês do bangue-bangue. Há personagens que ficam tristes com a morte do cavalo e caubóis preocupados em se livrar do mau hálito. O filme, sobre companheirismo e lealdade, é menos manipulativo do que Audiard tende a ser. Foi elogiado por isso.

Já o húngaro László Nemes (de "O Filho de Saul") foi muito aplaudido na sessão de seu "Sunset". Mas, no boca a boca, muitos reclamaram da monotonia e do maneirismo do cineasta, ao contar a história de uma moça determinada a encontrar o irmão, na Budapeste dos anos 1910.

O filme é sisudo, sufocante. Tem estrutura repetitiva, de um artista obsessivo. Mas Nemes é um visionário: cria um filme único, que, mesmo em sua chatice, é admirável.

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