Descrição de chapéu Cinema

'Mary Poppins' é remédio contra 'racionalismo das cápsulas espaciais'

Publicada na Ilustrada, crítica de 1966 analisa primeira versão cinematográfica do musical

São Paulo

Uma "injeção de fantasia", "um pleorama de coisas bonitas", "comediantes da melhor cepa".

A crítica do filme "Mary Poppins", lançado originalmente pela Disney em 1964, ganhou as páginas da Ilustrada dois anos depois. Na edição de 9 de janeiro de 1966, Armindo Blanco escreveu sobre o musical com a babá mágica que desce do céu —e que acaba de ganhar uma continuação.

Mas, se hoje o excesso de otimismo pode ser visto como antiquado e à moda antiga, na década de 1960 ele era um antídoto a um mundo regido pela Guerra Fria e ao "racionalismo das cápsulas espaciais".

"Em toda parte, dos Estados Unidos à União Soviética, se fazem estas películas otimistas para recreio coletivo das famílias. E é bom que isso aconteça numa época de suspeições, angústias e terrores", diz o texto.

Leia abaixo a íntegra da crítica publicada há 52 anos.

 

 

Tamanho Família

por Armindo Blanco

Na Inglaterra de Eduardo 7º não havia inflação: a libra esterlina, sólida e estável, suscitava a admiração mundial e o orgulho dos banqueiros da City. O sol jamais se punha sobre o maior império visto desde os tempos de Roma. E a guerra de 1914 era uma sombra remota que não chegava a toldar a confiança da burguesia financeira.

Nesse quadro de belle époque, a escritora P. L. Travers ambienta as aventuras de "Mary Poppins", uma babá que se inopino cai no espaço cósmico (antigamente dizia-se céu) na casa de um austero cidadão, mister Blanks (David Tomlinson), cuja maior preocupação consistia em fazer a ordem doméstica funcionar como a ordem bancária.

Pobre mister Blanks: a esposa (Glynis Johns) perdia as tardes nos comícios em prol do sufrágio feminino, os filhos eram dois diabretes e a criadagem evidenciava a clássica propensão da plebe para a anarquia.

Por isso, mister Blanks nunca desafivelava aquela máscara carrancuda de quem sabe que o mundo só é harmônico e equilibrado num balancete bancário: fora daí, começa a loucura, o non sense, a indisciplina.

E quem mais disciplinado do que a babá cósmica, que voava agarrada a um guarda-chuva, caminhava nos ares sobre nuvens de fuligem, tirava coisas do arco da velha de um pequeno saco de mão e ganhava corridas hípicas num elegante cavalinho de carrossel?

Não cabem quaisquer considerações de fria e minuciosa crítica cinematográfica em torno de um filme como "Mary Poppins". Em toda parte, dos Estados Unidos à União Soviética, se fazem estas películas otimistas para recreio coletivo das famílias. E é bom que isso aconteça numa época de suspeições, angústias e terrores. Talvez uma injeção de fantasia possa ajudar a compreender melhor o que de vital se perde quando deixamos de acreditar no mágico guarda-chuva de Mary Poppins e nos rendemos ao racionalismo das cápsulas espaciais.

Além disso, o filme de Disney, dirigido por Robert Stevenson, é um espetáculo brilhante, com ótimos bailarinos e cantores, comediantes da melhor cepa, música agradável, desconcertantes efeitos especiais e alguns balés divertidíssimos, como o dos pinguins e o dos limpa-chaminés. 

Não vale mencionar outros porque o filme é como a sacola de Mary Poppins, um pleorama de coisas bonitas. E, diante de muitas delas, ficamos como o filho de mister Blanks, isto é, de boca aberta e olhos arregalados.

Julie Andrews, que ganhou o Oscar com "Marry Poppins, deixa Dick Van Dyke roubar-lhe o filme. Dick é um prodigioso e desengonçado demiurgo, cria mil personagens encantadoras e até mesmo um grotesco demônio: mister Dawes, o rei da finança, velhinho caquético, incapaz de se manter sobre as pernas bambas, mas pronto a bater-se com indomável pertinácia por lucros, dividendos, juros, investimentos, sempre a proclamar que a vida é uma pilha de dinheiro crescendo até o infinito e que o progresso depende dos homens que jamais desperdiçaram um vintém em alpiste para pássaros.

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