Descrição de chapéu

Leia poema inédito de Moraes Moreira, que morreu nesta segunda

Compositor e cantor dos Novos Baianos escreveu obra inspirada em pichações paulistanas

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Ana Krepp
São Paulo

Em 2014, quando eu ainda era repórter da Folha, fazia a pé o trajeto de casa ao jornal diariamente pelas ruas do centro de São Paulo. Eram tantos compromissos e apurações permeando minha cuca, que dificilmente me atentava ao que passava diante dos meus olhos. Mas numa certa manhã, agraciada pelo poder do agora, reparei nas pichações com teor poético–e por quê não dizer "filosófico"?– de várias ruas.

No dia seguinte, lá estava eu munida de uma câmera fotográfica para registrar as fugazes poesias que seriam apagadas em semanas ou meses. Aos poucos, fui compilando aquelas frases que soltas, ali jogadas em muros cinzentos, tinham o poder de me tirar do piloto automático da rotina e me fazer pensar.

Ao registrar mais de 70 fotos, senti que de espectadora poderia me tornar uma ponte daquela arte, que tantas vezes é subjugada, para que ela tomasse novas formas e ganhasse nova atenção. Assim nasceu o projeto "Pixo-Poema".

Reli cada pichação com calma, uma e outra vez, fazendo um esforço para me conectar com a imagem de um artista conhecido, que tivesse o dom de captar o que o autor desconhecido do picho sentia.

“Uma flor nasceu na rua” foi o picho que me remeteu a uma eletrizante interpretação de “Eu Também Quero Beijar” de Moraes Moreira em uma apresentação que vi no Sesc Pinheiros, em 2011. Apesar de saber que o autor da canção em questão era Pepeu Gomes, sinto que Moraes era o "autor cósmico”, digamos assim, de toda flor que, desde então, passa por mim.

Consegui o email de Moraes, com quem até então nunca havia trocado sequer uma palavra, e expliquei a ideia. Uma jovem repórter de 20 e poucos anos, sem um tostão para recompensar músicos, poetas e letristas que quisessem versejar pichações e, com sorte, publicá-las algum dia. O "sim" veio depressa e carregado da simpatia de Moraes, que só quem viu pela TV sabe.

Alguns dias depois, o músico me enviou o poema e um recado junto a ele, perguntando se eu tinha gostado.

Se eu gostei, Moraes? Eu respondi que o poema seria um dos mais lindos que viria a compor o livro. E apesar de iniciar a negociação com uma grande editora, a obra nunca foi publicada. O poema de Moraes ficou guardadinho, ainda inédito, junto aos outros "pixos-poemas".

Nesta segunda-feira (13), quando soube que Moraes nos deixou, recordei desta pérola que tanto reflete a atualidade. Tempos duros e incertos, mas que também nos convidam a olhar com delicadeza a beleza que guardamos aqui dentro e dever brotar quando aprendermos a nos ressignificar.

É um prazer compartilhar com vocês esta letra inédita de um artista doce e certeiro que fez parte da minha geração, da de minha mãe, e certamente, dos filhos que virão. Obrigada, Moraes.

Uma flor nasceu na rua
Na dureza do asfalto
Brotou a delicadeza
E foi assim que a beleza
Tomou a gente de assalto
O amor falou mais alto
Na minha vida e na sua
Deixou a verdade nua
E crua na via pública
O alarido virou música
Uma flor nasceu na rua

No acirramento da luta
Desenrolou-se o conflito
Houve um momento bonito
Que não foi só força bruta
Alguém de boa conduta
Completamente na sua
Assim como quem atua
Lançou palavras de ordem
Gritou: acordem, acordem
Um flor nasceu na rua.

Moraes Moreira, 1º de maio de maio de 2014

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