Descrição de chapéu

Por que DJ Ivis é caso raro que pode ter final favorável à mulher

O episódio é uma terrível aula das razões pelas quais a violência doméstica encontra agravantes no Brasil

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Talvez você não tenha tido o desprazer de ver o DJ Ivis batendo covardemente em Pamella Holanda, sua mulher na ocasião. A cena veio a público quando a vítima denunciou o ex-marido na delegacia e postou fotos dos ferimentos em suas redes sociais.

É um dos raros casos de violência doméstica que conjuga pelo menos três fatores para um provável desfecho favorável à vítima. As cenas foram flagradas por câmeras domésticas, ou seja, existe prova material; os envolvidos tinham muitos seguidores nas redes sociais —ele artista, ela influencer—, que repercutiram o fato; e a mídia deu especial atenção ao caso.

Vieram, em tempo recorde, o repúdio habitual, os cancelamentos e as bem-vindas sanções de colegas e empresas parceiras do agressor. Fomos surpreendidos, também, pela reação oposta –o aumento considerável de seguidores do rapaz (saltaram de 736 mil para 953 mil). É um fenômeno que pode responder tanto pela curiosidade e desejo de criticar, quanto pelo sinistro desejo de apoiar o artista.

O episódio todo é uma terrível aula das razões pelas quais esse tipo de violência, epidêmica no mundo todo, encontra agravantes no Brasil.

Ao contrário do que se prega, toda violência doméstica tem algum tipo de testemunha direta ou indiretamente. Não há como não ver algum indício, como marcas corporais, comportamentos agressivos em público, quadros depressivos, tentativas de suicídio, enfim, uma série de sinais de que algo não vai bem numa família. Muitas vezes os sintomas são trazidos pelas crianças no ambiente escolar.

Sempre teremos um funcionário doméstico, um profissional de saúde ou educação, um colega de trabalho ou familiar capaz de reconhecer, por vezes tarde demais, que havia algo errado e perigoso. Esse grupo de testemunhas se divide entre os omissos, que não querem se meter na vida alheia e os coniventes, que acham ser tolerável esse tipo de situação. Ambos se escudam na famosa expressão “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

Se não bastassem as testemunhas indiretas, as cenas mostram, pelo menos, duas pessoas que presenciaram os espancamentos. Uma mulher, tão desprotegida quanto a vítima, que se posiciona de forma errática entre o casal, mas não se presta a chamar a polícia. E, em outra gravação, um homem que se omite vergonhosamente, durante o ocorrido.

Sim, ocasionalmente, mulheres batem em homens e outras mulheres. Esses casos, no entanto, são a exceção que confirma a regra. A relação de violência contra a mulher se insere numa longa tradição na qual o corpo feminino —principalmente da mulher negra e indígena— está à disposição dos interesses dos homens e da nação. É uma realidade que se ancora na própria fundação do Brasil, cuja miscigenação se deu à expensas do desejo feminino. Recomendo o livro “História das Mulheres no Brasil” organizado por Mary Del Priore para começar a conversa.

O excessivo escândalo diante do caso tem por efeito manter à sombra a mentalidade que o sustenta e com a qual compactuamos diuturnamente. Ainda julgamos o comportamento de homens e mulheres com réguas diferentes, pois o que para ela é xingamento, para ele é elogio —o exemplo clássico é puta e garanhão.

O corpo da mulher é sempre interpretado como disponível, e a ideia de consentimento nunca parece ficar suficientemente clara quando se trata de interpretar a negativa feminina. Ou seja, ali o homem reina e não aceita um não como resposta em nenhuma esfera, porque não aceita a mulher como um igual.

O personagem que completa o drama é a criança de colo e sua importância é crucial para entendermos como as violências se perpetuam geração após geração.

Ser criado em um lar violento é adquirir um vocabulário sobre amor, sexo, família, homem e mulher distorcido pela experiência. É duvidar das próprias percepções uma vez que o agressor tenta criar uma versão justificável dos fatos. O risco de que essas crianças reproduzam esse comportamento é altíssimo, tanto como vítimas como quanto algozes.

Alguns discursos religiosos também, embora condenem a violência contra a mulher, exigem que ela permaneça ao lado do marido abusador, em nome da família. Entre a denúncia e a punição existe um abismo, que passa por pessoas que perguntam o que a mulher fez para merecer apanhar (mesma pergunta em caso de estupro).

Essa foi a lógica que Iverson de Souza Araújo, o DJ Ivis, usou para justificar seus atos publicamente, revelando o que está em jogo aqui –nossa incapacidade, enquanto sociedade, de pensarmos a mulher como um sujeito de igual valor.

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