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'A Outra Garota Negra' satiriza a diversidade forçada nas empresas

Thriller ambientado numa editora mostra como elas podem tratar o assunto como um circo

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Yasmin Santos

Jornalista, é pós-graduanda em direitos humanos, responsabilidade social e cidadania global

A Outra Garota Negra

  • Preço R$ 69,90 (384 págs.); R$ 46,90 (ebook)
  • Autoria Zakiya Dalila Harris
  • Editora Intrínseca
  • Tradução Flávia Rössler e Maria Carmelita Dias

Assistente editorial há dois anos em uma das maiores editoras dos Estados Unidos, Nella recebe um salário irrisório, sem nenhuma perspectiva de promoção nem de sequer poder editar um livro por conta própria.

Seu dia a dia é regado a café e a microagressões. Ao menos uma vez por mês, ela se tranca no banheiro e se questiona "por que ainda estou aqui?". Nella é a única mulher negra na empresa.

Quando o cheiro inconfundível de manteiga de cacau invade as suas narinas, ela sabe que não está mais sozinha. Torce para que seja alguma aliada, que possa compartilhar com ela suas frustrações, que possam aprender a se curar juntas.

Hazel, a nova assistente editorial, usa longos dreads com mechas loiras —aliás, os cabelos são quase personagens independentes da trama de "A Outra Garota Negra". É sorridente, simpática e atenciosa.

mulher negra em meio à mata
A escritora americana Zakiya Dalila Harris, autora de 'A Outra Garota Negra', sobre uma jovem que busca se situar em um ambiente de trabalho quase todo composto por pessoas brancas - Amr Alfiky/The New York Times

A postura altiva de Hazel contrasta com o semblante desesperançoso de Nella. Enquanto uma se constrange diante das microagressões, a outra sorri; enquanto uma alerta sobre estereótipos racistas num livro, a outra enaltece a coragem do escritor branco. Hazel é a negra boa, Nella é a negra má.

É assim que Zakiya Dalila Harris costura a história de seu romance recém-lançado no Brasil pela Intrínseca. O livro parte da experiência da própria autora, que também atuou no mercado editorial em Manhattan. Muitos traços de sua personalidade estão presentes em Nella —às vezes mais do que Harris gostaria, segundo ela.

Mesclando diferentes gêneros literários, a sensação é que esse thriller psicológico vai mudando de forma com o passar das páginas. É, em suma, uma sátira sobre tokenismo —a prática de contratar pessoas negras de forma pontual e cosmética.

Harris expõe como uma empresa dita progressista pode adoecer profissionais negros. É como se fosse preciso assumir uma outra personalidade para sobreviver à rotina excruciante de um ambiente de trabalho quase exclusivamente branco.

De fato, os momentos em que realmente conhecemos Nella são ao lado de Malaika, sua melhor amiga negra que também sofre nas mãos de seu chefe branco. É quando Nella pode simplesmente ser, sem amarras, com todas as suas contradições.

A trama cresce quando bilhetes anônimos começam a aparecer na mesa de Nella dizendo que ela deve deixar a empresa. Ela não sabe se é um alerta ou um ataque racista. Os bilhetes se transformam em ligações, dando a entender que só há espaço para uma única pessoa negra na empresa.

Para construir uma carreira, Nella precisa aprender a ser a negra boa, a abandonar os seus ideais e a encarar o trabalho apenas como um trabalho. É preciso entender que pessoas brancas não estão realmente dispostas a ouvir, querem apenas aplausos por fazer menos do que o mínimo. Há muito o que se pensar sobre o jornalismo na trama.

Diversidade, palavra tão usada hoje pelo marketing das empresas, assume um sabor amargo no livro. A mesma editora que se acha bastião da diversidade por estar publicando um crescente número de autores negros não se questiona sobre o porquê de ainda conseguir lembrar de cor o nome de todos os escritores negros que já haviam passado por lá, ou o porquê de a grande maioria deles serem estrangeiros.

As reuniões de diversidade relatadas no livro, a princípio defendidas por Nella, satirizam as rodas de conversa constrangedoras pelas quais Harris passou. Praticamente um circo, com os negros sobre o picadeiro.

A autora não cai na armadilha de construir uma trama com excesso de didatismo, como se estivesse educando brancos a não serem racistas, a enxergarem algo que está a um palmo de distância de seus olhos. O Google está aí para isso.

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