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Joan Didion se banhou em ambivalências e escancarou fraquezas

Escritora, morta aos 87 anos nesta quinta, deixou belíssimo legado e soube falar de assuntos variados

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Você tem outra relação com um autor ou autora quando passa a traduzir o que ele ou ela escreveu. Traduzir "O Álbum Branco" me permitiu compreender a natureza do refinamento e da precisão da escrita de Joan Didion, que morreu nesta quinta-feira, aos 87 anos, em decorrência da doença de Parkinson.

Nem sempre foi fácil encontrar o equivalente em português do que é, na escrita de Didion, a palavra exata —e que no geral incorpora uma polissemia nada gratuita, modulada pelo contexto. Também me permitiu notar uma opacidade que remonta menos ao texto do que à própria figura de Didion.

Parece contraditório, mas não é o caso. Didion foi sem dúvida uma autora que se esforçou para elaborar e aperfeiçoar uma voz que a singularizasse. Se por um lado uma frase com mais de um sentido é uma frase ambígua, por outro é justamente a ambiguidade que Didion perseguia. O rigor de sua escrita mora nesse jogo deliberado e fascinante entre o implícito e o explícito.

Embora tenha escrito ficção, foi graças aos seus ensaios —que muitos vinculam ao jornalismo literário—, que Joan Didion virou a lenda que nunca vai deixar de ser.

Didion nasceu na cidade de Sacramento em 1943 e fez do estado americano da Califórnia não só o cenário mas o tema de alguns de seus melhores e mais famosos escritos. É o caso de "Água Benta" e "Dias Tranquilos em Malibu".

Joan Didion at home in Hollywood
Joan Didion em sua casa em Hollywood, nos Estados Unidos - Julian Wasser/Divulgação

A escritora retratou como ninguém os Estados Unidos dos caóticos anos 1960 e 1970. São emblemáticos o já mencionado "O Álbum Branco", publicado pela HarperCollins, e "Rastejando Até Belém", traduzido por Maria Cecilia Brandi para a editora Todavia.

O gênio de Didion se deve a uma combinação de fatores. Ela foi capaz de retratar as mudanças intensas daquele período com certa regularidade e presença de espírito, soube falar de muita coisa, teve consciência da posição específica que ocupava e compreendeu como usar tudo isso para moldar uma voz.

Além disso, Didion captou menos uma época e um lugar, num sentido estático, do que uma época e um lugar em movimento —e cujos próprios signos se transformam diante dos olhos do leitor.

Não faz isso, no entanto, de forma explícita. A escrita de Didion capta o momento em que algo vira outra coisa sem deixar ainda de ser a anterior, e talvez venha daí sua ambiguidade —ou parte dela.

O olhar de Didion é incomparável quando o assunto é capturar esse deslocamento e deixar implícitas suas consequências. E isso se dá nos detalhes, quase sempre a serviço dessa ambivalência que faz com que também operem em duas escalas simultâneas, a do fútil e do relevante.

Em "Muitas Mansões", por exemplo, Didion parece comentar o mau gosto da nova casa do governador da Califórnia. Mas, ao criticar a cozinha equipada com micro-ondas e compactador de lixo, ela está falando de uma transição bem mais ampla —e da própria posição como filha de uma classe considerada elitista.

Mulher branca idosa fala em evento
A autora Joan Didion em Nova York, 5 de janeiro de 2007 - Sara Krulwich / New York Times

Didion ora acompanha de bom grado, ora é arrastada por essas mudanças; ora participa, ora fica de fora.

Nada me enternece mais do que a lista a que ela recorria quando precisava arrumar a mala às pressas antes de uma viagem de trabalho —além de cigarros e uísque, saias. Na época em que a banda The Doors estava em alta, as calças não tinham lugar na mala de Joan Didion. É só um detalhe, e não é só um detalhe.

No texto "Notas para uma Dreampolitik", ela entrevista uma aspirante a atriz chamada Dallas Beardsley. Didion é condescendente quando diz que "querer ser estrela de cinema era uma ambição anacrônica" naquele ano de 1968, quando tudo o que as garotas esperavam era "dar e receber aquilo que se chamava de boas vibrações e renunciar à ambição pessoal como uma competição do ego".

O comentário é jocoso tanto com as influências do movimento hippie quanto com jovens como Beardsley. Didion não se vê em lugar nenhum.

Quando a escritora integra algum "nós" nos textos, é quase sempre de forma tênue e não muito comprometida —como o momento em que se vê como parte de uma geração, no ensaio "Acordando Depois dos Anos 1960".

Nem sempre dá para dizer quando Didion está sendo irônica e quando não está. Nem quando está sendo apenas Didion, ou seja, ambígua, uma mistura volátil e irresistível que une uma certa qualidade esquiva —que ocasionalmente pode se traduzir em um comentário intrigante que de vez em quando beira o pitoresco, quando não o frívolo ou leviano, mas que no fundo não é nada disso— a uma aparente franqueza desconcertante inserida num texto como que por acaso, um presente inesperado para o leitor. Pois ela tampouco prescindia, mesmo nos textos mais íntimos, de certo distanciamento e da opacidade.

Seus livros de memórias alcançaram um público mais amplo. Em 2005, a autora publicou aquele que viria a ser seu trabalho mais famoso, "O Ano do Pensamento Mágico", traduzido por Marina Vargas para a HarperCollins. Nele, narra a morte do marido, o jornalista John Gregory Dunne, e o doloroso processo de luto que se seguiu.

Em 2010 viria "Blue Nights", traduzido por Ana Carolina Mesquita no Brasil, dedicado à filha Quintana, que morreu alguns meses depois do pai.

Se você leu "O Álbum Branco", sabe por que Didion gostava de Georgia O’Keeffe —porque O’Keeffe pintava o que tinha vontade e não dava explicação alguma— e desprezava Doris Lessing —porque ela escrevia o que tinha vontade e não abria mão de glosas intermináveis. É também aí que mora meu respeito e admiração por Didion.

Ela examinou suas maiores dores e escancarou não poucas de suas vulnerabilidades, viu e selecionou e narrou, mas, se você prestar bem atenção, vai ver que ela nunca se explicou. Não precisava. Está tudo lá e não está. Sempre atenta, sempre esquiva. Que belíssimo e eterno legado.

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