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'The Lyrics', de Paul McCartney, reúne todas as letras de sua obra musical

Coletânea em dois volumes é um retrato interessante de um letrista excepcional, apesar das pretensões literárias

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Ludovic Hunter-Tilney
Nova York | Financial Times

Paul McCartney é um dos compositores de canções de maior sucesso da história —mas será que é bom letrista? "Distractions/ like butterflies are buzzing/ round my head", ou distrações zumbem como borboletas em volta da minha cabeça, de sua canção solo "Distractions", é uma descrição confusa e ruim que faz as borboletas zumbirem por razão nenhuma, exceto o aliteramento.

"Women scream and run around/ to dance upon the battleground/ like wild demented horses", ou mulheres gritam e correm de um lado a outro para dançar no campo de batalha como cavalos selvagens e dementes, são versos de outro trabalho solo, "House of Wax". "A música em si fica bastante dramática", destaca McCartney eufemisticamente em "The Lyrics".

Esse livro pesado em dois volumes e com preço salgado contém as letras de 154 canções que abrangem toda a carreira de McCartney. Elas vão desde sua primeira, "I Lost My Little Girl", que ele escreveu aos 14 anos, até o álbum do ano passado "McCartney III", lançado quando ele tinha 78.

Paul McCartney ao lado do editor Paul Muldoon
Paul McCartney e o editor Paul Muldoon durante evento de lançamento do livro 'The Lyrics', em Londres, na Inglaterra - Mark Allan-5.nov.2021/Reuters

As letras que são pura e simplesmente ruins constituem exceções, e não a regra. Não vemos "buzzing butterfles" em abundância –elas não são "a dime a dozen", ou um centavo por uma dúzia, parafraseando o aspecto transatlântico da linguagem usada por Macca (a ação de sua canção do Wings "London Town" ocorre numa "sidewalk" —calçada em inglês americano—, não "pavement", como seria o caso de uma calçada britânica).

Mas o livro não fundamenta as comparações otimistas traçadas no prefácio por seu editor, o poeta Paul Muldoon, com W. B. Yeats, Byron e William Wordsworth, que Muldoon descreve como o "colega letrista" de McCartney.

Ao lado desses seus supostos antecessores literários, o dístico de McCartney em "Here Today", sobre o assassinato de John Lennon –"I still remember how it was before/ and I am holding back the tears no more", ou ainda me lembro de como era antes e não contenho mais minhas lágrimas, não passa de poesia de baixa qualidade.

Vincula forçosamente uma recordação constante –"I still remember"– a um extravasamento emocional contraditório –"I am holding back the tears no more". Mas "Here Today" não deve ser avaliado como literatura. Estrofes que soam mal quando lidas na página escrita se convertem em homenagem comovente a Lennon quando McCartney canta "Here Today".

"Ninguém presta atenção à letra. É apenas o som da canção", era a filosofia dele e Lennon nos tempos iniciais dos Beatles. O modo como uma letra é ouvida define seu significado. A maneira como "love" é esticada no vocal de McCartney em "Can’t Buy Me Love", enquanto a palavra "money" é pronunciada rapidamente, ilustra a mensagem da canção.

"Can’t Buy Me Love" foi escrita em 1964 no hotel de luxo George V, em Paris, cidade à qual McCartney e Lennon haviam viajado de carona alguns poucos anos antes. O que o dinheiro consegue comprar era uma preocupação importante deles.

Há uma abundância de detalhes contextuais como esses em "The Lyrics". Cada uma das 154 canções é acompanhada por trechos de recordações em tom descontraído, baseados em conversas com Muldoon. O texto é acompanhado por ilustrações lindamente reproduzidas e que incluem instantâneos pessoais, retratos formais e memorabília.

O resultado é um misto de coletânea de letras, livro de memórias e livro ilustrado –uma forma composta que remete ao caráter abrangente e completo da musicalidade de Paul McCartney.

Ele e Lennon cumpriam as funções de compositor, letrista, instrumentista e cantor. Há uma foto maravilhosa dos dois, doppelgangers adolescentes, debruçados sobre seus violões na sala da casa geminada de McCartney em Liverpool, em 1962, compondo "I Saw Her Standing There".

Guitarrista canhoto, enquanto Lennon era destro, McCartney compara os dois juntos a reflexos espelhados. Como mostra o novo documentário "Get Back", de Peter Jackson, a proximidade telepática entre os dois continuou até os Beatles chegarem ao fim.

Fiel ao espírito de rivalidade mútua que também moldou a parceria, McCartney se retrata como o rapaz bibliófilo, leitor inveterado e frequentador de teatro, munido de qualificação acadêmica avançada em inglês ("John nunca teve nada parecido com meu interesse por literatura").

O livro se esforça muito para citar influências literárias que parecem improváveis. O romance "The Go-Between", de L. P. Hartley, do qual McCartney não tem certeza se já ouvira falar na época, "pode muito bem ter influenciado" a canção dos Beatles "She Loves You", diz Muldoon. Uma versão irônica do refrão nos vem à mente, "yeah, yeah, yeah".

A recordação de McCartney de seu pai, sentado na sala ao lado fumando seu cachimbo e comentando que eles deviam cortar os americanismos e cantar "yes, yes, yes", é uma imagem que revela muito mais sobre a criação da canção. McCartney e Lennon geralmente levavam por volta de três horas para compor uma canção, e McCartney não leva muito mais que isso como criador solo.

"Eu tinha essa ideia de que você podia juntar palavras quaisquer e elas ganhariam algum sentido", ele fala em certo momento. Anotações surreais, do tipo de um fluxo de consciência ligeiro, além de rabiscos de personagens que parecem de quadrinhos, aparecem com frequência na obra, ao lado do otimismo romântico que Lennon ironizou durante as hostilidades pós-Beatles. McCartney retrucou escrevendo uma canção intitulada "Silly Love Songs".

Ele revela pouco sobre seu estilo vocal ("nunca pensei muito sobre minha voz"), mas compartilha dicas de alguém que criou muitos sucessos ("um grito é sempre um bom começo de canção"). O mais perto que chega de fazer uma autoanálise é quando liga a positividade e o sentimento de suas canções à morte de sua mãe por câncer quando ele tinha 14 anos, logo antes de escrever "I Lost My Little Girl".

A última canção do livro é "Your Mother Should Know", e a foto final mostra McCartney como pai, de mãos dadas com uma de suas filhas ainda criança. Apesar de suas pretensões literárias implausíveis, "The Lyrics" é um retrato interessante de um songwriter excepcional.

The Lyrics: 1956 to the Present

  • Preço US$ 100 (cerca de R$ 569; 912 págs.); R$ 375,39 (ebook)
  • Autoria Paul McCartney
  • Editora Liveright Publishing Corporation
  • Editor Paul Muldoon

Tradução de Clara Allain

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