Conheça a Praça do Funk, reduto de talentos que faz hits estourarem pelo país

Espaço na zona leste de São Paulo concentra produtoras em ascensão e atrai músicos do Brasil todo

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homem moreno e tatuado posa sem camisa segurando extintor de incêndio diante de fundo vermelho

O rapper MC Paulin da Capital, um dos nomes mais famosos da produtora LoveFunk e autor da canção 'Obrigado Deus' Divulgação

São Paulo

Numa praça no Jardim Imperador, na zona leste de São Paulo, quase todo dia é dia de bingo. É um bingo diferente. Os participantes são jovens em busca do sonho de se tornar MCs de funk de sucesso. As dezenas sorteadas equivalem a uma chance –mostrar o talento e tentar ganhar uma gravação de música e videoclipe.

Quando acaba o sorteio, no começo da tarde, outros artistas do funk aparecem na praça. Empresários da música têm reuniões em banquinhos de concreto. Um carrão estaciona e de lá sai um MC com milhões de seguidores no Instagram. Fãs cantam um de seus sucessos ao som de palmas. Tudo na praça. É a praça do funk.

De nome Miguel Ramos de Moura, também conhecido como praça do Vinho, o logradouro concentra a seu redor algumas das produtoras em ascensão no funk da cidade hoje. Mais próxima fica a Love Funk, a maior da região. A poucos metros está a NVI e a umas quantas quadras está a SpaceFunk.

Músicas que totalizam mais de 100 milhões de visualizações no YouTube como "Vitória Chegou", do MC Lipi, e "E Nós Tem Um Charme Que é Dahora", da MC Dricka, saíram de pequenos estúdios nesses edifícios —e a possibilidade de se tornar um desses nomes atrai jovens de todo o país.

"Vem gente de todos os lugares para cá. Já veio até gente do Pará", diz Andre Morais, diretor comercial da LoveFunk. Ele sempre está de olho nos talentos que podem surgir por ali. O bingo de quase todo dia é também uma oportunidade para a produtora, ávida por trazer novos artistas. "A gente teve sempre essa preocupação de ter essa identidade com a favela", afirma.

Num dia de sol a praça chega a receber ao menos 30 jovens logo cedo. A inscrição é feita gratuitamente, no ato. Naquele dia, o motoboy Wiliam Chaves chega acompanhado da mulher e do filho. Não é sua primeira vez ali, mas é sua estreia com torcida. Deu sorte –foi chamado para a audição. Ali mesmo, ele se transforma em MC Vela e canta uma letra que ele compôs em casa.

Os outros concorrentes também dão o seu melhor. Algumas vozes falham pela puberdade ou pelo nervosismo, outras não tem projeção. MC Vela acaba sendo preterido. "Mas eu vou voltar aqui, não quero parar", diz ele, enquanto o filho dança ao som de outros rapazes cantando funk.

O escolhido do dia é Ismael Oliveira, de 17 anos. Tão logo recebe o anúncio da vitória, é levado a uma saleta da LoveFunk onde vai dar vida a sua música. A gravação no pequeno estúdio com computador, teclado musical e microfone leva poucas horas. Ao lado do produtor Nill Prod, Ismael adapta a sua voz a balizas comuns na música como melodia, harmonia e tempo.

A canção sai algo entre suave e dramática, bem ao tom da letra, uma carta à mãe. Com a roupa que veio — camiseta amarela e boné marrom da marca Lacoste—, o jovem volta à praça no fim da tarde. Ali gravam o clipe da música. O resultado sai em pouco dias. Em dois meses, a canção "O Mãe" do MC EL tem cerca de 2.000 visualizações.

Esse ritmo corrido dá a dimensão do processo criativo em produtoras do entorno da praça, como a LoveFunk. A empresa está sediada num edifício de paredes inacabadas, sinal da expansão incessante que data menos de um ano. Em 2019, ano de sua fundação, trabalhavam ali cinco funcionários e sete artistas. Hoje, são 20 pessoas só no setor de venda e cerca de 80 MCs e DJs contratados.

A curva de crescimento é resultado de uma agressiva estratégia digital. Em meio à restrição de shows, a empresa se voltou ao streaming. "A pandemia permitiu que a gente se destacasse porque nosso custo de operação é baixo", diz Morais. "Estamos grandes, mas não saímos dessa praça."

Essa mudança de gravidade para o online dita hoje boa parte do mercado de funk de São Paulo, e isso tem impacto no Brasil inteiro. É também o que tem garantido a chegada de novas empresas num universo que tinha se polarizado entre KondZilla e GR6.

O projeto caça-talentos da LoveFunk, chamado "Revelação da Favela", se soma a canais no YouTube e outras empreitadas voltadas a estreitar os laços com as periferias da cidade, de bailes de rua a bares, tabacarias e casas de show. "A cultura do funk tem ficado muito colorida, muito pop, e aí acaba se perdendo o que é o funk", diz Morais. "Funk é a voz da favela, um pedido de socorro, uma oração."

Um dos nomes mais famosos da LoveFunk, MC Paulin da Capital tem uma canção chamada "Obrigado Deus", com 65 milhões de visualizações no YouTube. O andamento é mais lento do que o usual para o baile, a letra tem versos elaborados e dá mais espaço para cantoria. Essa tendência ganhou corpo na praça.

No prédio da LoveFunk, o sobe e desce de famosos e novatos é corriqueiro. "Só não fica assim segunda e sexta", explica Morais. "Segunda porque é fechamento do fim de semana, e sexta porque é o quando os artistas saem para os shows."

Também tem espaço ali o funk dos fluxos, as festas de rua que tomam as periferias de São Paulo. Divididas em subgêneros com nomes como mandelão e automotivo, as músicas não fogem ao esquema de linhas de produção. O problema nesse caso é se manter atualizado com as novidades que fazem sucesso nos bailes, já que muito disso é produzido por DJs que trabalham de forma independente.

"O que toca na rua é o que o contratante está ouvindo", afirma Rodrygo R10, diretor do quadro artístico e vice-presidente da NVI. "Assim que a música é gravada, ela é registrada, uma ficha técnica é enviada para nosso setor autoral, os designers fazem uma capa e ela é enviada para as plataformas de streaming por meio de uma distribuidora", diz ele.

Nos últimos meses, a NVI ocupou quatro posições no Top 200 do Spotify com faixas que fizeram sucesso primeiro nos fluxos de São Paulo.

Segundo R10, cerca de cem músicas saem a cada mês da produtora. A mais famosa é "Bum Bum Tam Tam", hit do MC Fioti que se tornou o primeiro clipe brasileiro a ter mais de 1 bilhão de visualizações no YouTube.

Segundo R10, a localização da praça favorece –ela fica entre Aricanduva, Itaquera, Vila Prudente e São Mateus. É como se aquele círculo de equipamentos públicos malcuidados estivesse no centro geográfico da zona leste, não muito distante de Cidade Tiradentes, o berço do funk na capital.

Presidente da SpaceFunk, uma das produtoras da praça, Cleyton Viana vive no bairro desde que nasceu. Viu a ascensão do funk sob a perspectiva dos negócios. "Eu tinha uma balada, e alguns MCs, como o MC Gui, cantaram pela primeira vez no meu palco", conta.

Viana diz que a produção do funk da região também se arvora para além da praça. Alguns DJs e MCs nem chegam a frequentar as produtoras porque trabalham de casa no modelo home office. Na outra ponta, as empresas financiam as chamadas "mansões", as casas em que jovens influencers da periferia vivem para criar vídeos para as redes sociais.

Na "mansão" Space Funk, mais de dez jovens passam o dia encenando vídeos de pequenas novelas e coreografias. As músicas que embalam as produções quase sempre vêm da própria Space Funk. "Se eu quero estourar uma música, eu preciso mandar ela para a mansão", afirma Viana.

A SpaceFunk trouxe do Ceará o DJ DM, especialista em pisadinha, para trabalhar nos seus estúdios. A NVI desenvolveu há pouco tempo um núcleo dedicado a produzir trap.

André Morais, da LoveFunk, quer criar uma produtora gospel na praça. De cima do quinto andar recém-construído do edifício, olhando para o horizonte como quem posa para a capa de uma revista de negócios, ele diz "esse lugar virou o coração do funk na cidade".

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