De Poze a L7nnon, entenda como o trap assimilou 'cultura de favela' no Rio

Com o selo Mainstreet, do rapper Orochi, gênero absorveu elementos do funk e se transformou para refletir a cidade

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homem de camisa preta com copo na mão

O rapper carioca Orochi no camarim de seu show na Sapucaí, no Rio de Janeiro Divulgação

Rio de Janeiro

Orochi, um dos artistas mais ouvidos do Brasil nos últimos anos, segura um copo de uísque enquanto se prepara para subir ao palco na Sapucaí, templo do samba carioca. O Carnaval fora de época havia acabado de acontecer no Rio de Janeiro, mas o rapper não faz exatamente o tipo de música mais identificado com a festa de rua.

"A Mainstreet está tentando vender a imagem do Rio de Janeiro adaptada através do trap", ele diz, falando do selo que criou ao lado do sócio Lang, casa de gente como Poze do Rodo, Borges, Bielzin, Chefin e Oruam, entre outros. "Essa identidade está sendo moldada, para a galera cada vez mais entender a estética do Rio. E a gente vem tentando identificar essa estética. O Rio tem artistas originais, sem desmerecer outros estados. São Paulo tem muita gente, o Matuê está criando uma cena em Fortaleza, mas o Rio está fazendo o trap ser a maior potência do bagulho."

O rapper carioca L7nnon
O rapper carioca L7nnon - Divulgação

Orochi subiu ao palco, em evento todo dedicado aos artistas do selo, cantando "Lobo", música sintética e viajada, que antes de chegar à Sapucaí já era parte da trilha sonora da cidade, dos sons automotivos às caixinhas de som que são febre nas praias. Além de alavancar a carreira do próprio Orochi, a faixa teve uma importância extra —marcou a transição de MC Poze do Rodo, expoente do funk em 150 BPM, que estava no auge do sucesso em 2019, para o trap, espelhando uma movimentação do próprio Rio.

"Ele já tinha feito 'Vida Louca'", diz Orochi, lembrando a música lançada no ano passado, um trap composto por Bielzin e gravado por Poze do Rodo, que se tornou um dos mais ouvidos do país. "Quando a gente ouviu aquilo, vimos que ele teria um futuro. Chamei ele para o estúdio. Gravamos 'Lobo' e depois 'Assault (Rio)' no mesmo dia, vimos como ele soava na nossa estética. Falei a ele e ao Bielzin 'se em um dia a gente fez essas duas, imagina se a gente for do mesmo bonde e fizer várias?'."

Desde então, Poze do Rodo vem emplacando hits e sendo peça fundamental na fusão orgânica entre o trap e o funk, a estética importada dos Estados Unidos, onde surgiu o subgênero do rap, e a vivência carioca. Nas palavras de Orochi, essa transição "foi uma parada que fez nêgo entender muito mais o trap no Brasil".

Esse era um dos desafios da Mainstreet, diz Lang, um dos fundadores do selo. "Na real, o trap no Brasil veio como um movimento mais elitizado, de uma galera que escutava música lá de fora. O que a gente tentou fazer, com toda uma galera que veio junto, foi tentar trazer ele para a cultura de favela. É uma camada social que no Rio sempre ouviu muito funk. Em determinado momento, você tem claramente uma diminuição da importância do funk no Rio —que ainda é o maior gênero musical, é exportado. Mas existe uma ascensão do trap."

Nesse processo, houve uma assimilação do Auto-Tune, ferramenta de edição de voz fundamental no trap. "Para quem já tem uma noção maior de tom, ele dá um empurrãozinho. Eu consigo alcançar as notas sem Auto-Tune, mas uso por estética. Combina com o que eu quero passar, sonoramente falando. Mas foi difícil acostumar o público. Não fomos os primeiros, mas alguns dos primeiros a usar. Eu sabia que seria difícil", diz Orochi.

Junto à ascensão do trap, veio também uma volta do protagonismo dos MCs, já que no funk em 150 BPM os DJs —como Rennan da Penha, Iasmin Turbininha, Polyvox e FP do Trem Bala— ganharam o centro do palco.

"Essa cultura do 150 BPM veio junto com as montagens de DJs, que faziam a vida do MC ficar um pouco complicada. Eram montagens com várias músicas, uns 30 segundos de cada, numa velocidade muito rápida. Fortaleceu os DJs mas enfraqueceu o MC, com exceção de alguns, como o Kevin o Chris. Nesse vácuo, quando entrou a pandemia, sem festa, sem baile, era mais difícil o funk estourar uma música."

Este novo trap que se desenvolveu no Rio se opõe ao ritmo frenético do funk que dominava a cidade antes da pandemia. Se o baile havia virado rave, como diziam os DJs, o trap veio com um clima mais relaxado e desacelerado —é música que combina com um passeio na praia ou uma volta de carro. "O funk é uma música dançante, que você ouve no baile ou na balada e depois no streaming. O trap você ouve na balada, mas ouve muito mais em casa, escuta o disco inteiro", diz Lang.

Mas os artistas da Mainstreet não foram os primeiros e nem os únicos a fazer trap na cidade. Por volta da metade da década passada, coletivos como Uclã e Pirâmide Perdida, de onde saíram nomes como BK e Luccas Carlos, entre outros, já experimentavam com o gênero. Em 2018, o produtor WC no Beat lançou um álbum conceitual fundindo trap com funk, "18k", com participações de gente como o MC Cabelinho, que começou no funk e hoje se converteu ao trap, além do próprio Orochi.

Em 2019, Borges lançou "AK do Flamengo", destacando o chamado "trap de cria", com letras explícitas que retratavam o cotidiano das favelas, incluindo festas e curtição, o tráfico de drogas e a violência. Mas até o ano passado, o trap do Rio ainda não tinha tido os números no streaming e a penetração nacional que tem hoje, pulverizado na voz de artistas como MD Chefe, TZ da Coronel, Filipe Ret, Xamã, Maneirinho e L7nnon, além dos nomes já lembrados.

L7nnon, que há pouco se tornou o rapper mais ouvido do país, representa bem o caminho que o estilo vem tomando em sua cidade de origem. Sua voz está ao mesmo tempo em "Desenrola Bate Joga de Ladin", hit de funk em parceria com o experiente grupo Os Hawaianos, e em "Freio da Blazer", um típico trap arrastado e viajado do Rio.

Ele tentava uma carreira como skatista quando enveredou para o rap e entrou para o selo Papatunes, do renomado produtor Papatinho. "A minha ideia era dar o papo reto. Achava que não tinha que fazer música de amor, era mais ser underground, falar da rua, de vida", ele diz.

Sua estética foi desenvolvida em parceria com o produtor. "Eu era muito de escrever sem batida. Aí ele mostrava o beat e eu tentava encaixar. Outras vezes ele falava ‘tenta encaixar o flow de tal jeito nessa parte’. O principal foi essa conexão que a gente teve desde o início."

silhueta de um homem fumando diante de bola incandescente rosa
O rapper carioca Filipe Ret - Reprodução/Facebook/Filipe Ret

"Freio da Blazer" destaca dois temas recorrentes nesse trap —a ostentação e o tratamento racista que a polícia dá a quem ostenta. "O freio da [Chevrolet] Blazer [carro usado pela PM do Rio] é a cara de quem a polícia enquadra, o estereótipo —a tua cor, o jeito que você se veste. É você ter que ficar afirmando que aquilo é seu, que você conquistou com o suor do seu trabalho. É você ser visto como uma pessoa que não pode ter aquilo, um carro, uma roupa, uma joia maneira, e ser sempre tachado como um cara criminal. É um grito das pessoas que passam por esse constrangimento diário."

É um assunto que está em "A Cara do Crime (Nós Incomoda)", música que reúne os rappers da Mainstreet e, de tanto sucesso, já rendeu uma segunda parte, e ainda vai ter uma terceira, prevista para esta sexta-feira. São faixas que reúnem todos os elementos do trap do Rio, a célula rítmica e os refrões do funk, além de graves e batidas de trap e vozes com Auto-Tune.

Na música, Cabelinho e Poze do Rodo cantam sobre vivências cotidianas do Rio, como ir ao jogo do Flamengo no Maracanã e depois ao baile funk, e celebram a autoestima e o estilo com roupas e tênis caros. Até a maneira de ostentar tem um jeito próprio no trap do Rio, num universo estético que inclui camisas da Lacoste ou de time de futebol, o perfume 212, roupas da Nike —representada nas letras pela metáfora da vírgula, referência ao símbolo da marca—, o corte de cabelo "americano" e o "bigodinho fininho". "Cheirando a 212, no meu pano estou ‘virgulado’", como canta Chefin em "212".

Imagem mostra homem negro com uma coroa na cabeça
O músico MC Cabelinho - Divulgação

"É o jeito que a gente vive a vida aqui, às vezes mais malandreado", diz L7nnon. Segundo Lang, é algo que reflete a cultura da favela. "É o cara que ficou rico, conheceu o que existe —Dior, Gucci e tal—, mas ele vai cantar sobre a vivência dele. Na favela, Lacoste é a parada, Nike é a parada, o perfume é 212. É ostentação, mas é mais acessível e popular aqui no Rio. Faz parte da absorção dessa cultura." ​

Em "Corte Americano", hit de Filipe Ret, L7nnon canta que a "blusa do Flamengo não é camisa, é manto", pondo o uniforme de time de futebol numa posição de ostentação. "É você pegar a cultura que é sua desde sempre e valorizar essa cultura", diz Lang.

"É não largar as raízes. Não é porque eu sou milionário que eu vou gostar do que aquela elite branca e rica gosta. São coisas que às vezes não tem um valor material enorme, mas têm um valor cultural e emocional —como a camisa do Flamengo, que na comunidade é o manto sagrado."

"Se eu fosse explicar o trap para um gringo, eu ia chamar ele para ficar um mês comigo", diz Bielzin. "Porque a gente só escreve o que a gente vive. É a pura realidade, o que a gente vê e o que a gente deseja também. O trap é o funk, é a mesma cultura, é a rapaziada da favela."

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