"Mulheres precisam estar nuas para estarem nos clipes musicais enquanto 99% dos caras estão vestidos?", disparou o grupo de arte feminista Guerrilla Girls em 2014, em referência aos cartazes que produziram sobre a diferença entre o grande número de figuras de mulheres nuas em pinturas e esculturas e a quantidade bastante inferior de mulheres artistas nos maiores museus do mundo.
Nessa estrutura onde mulheres refletem o desejo de sexo e servidão do patriarcado, homens são sempre sujeitos, nunca objetos. A situação parece ser bastante diferente na Tijuquinha, comunidade na zona oeste do Rio de Janeiro onde Anitta gravou seu mais recente videoclipe, ‘Funk Rave’, e causou comoção aproximando progressistas e conservadores com cenas quase ousadas que vazaram durante as gravações, em janeiro.
Um conjuntinho preto e branco em referência à marca Bad Boy e óculos espelhados estilo Juliet na cabeça, um par de chinelos Kenner que se alterna com tamancas coloridas nos pés, shortinho jeans rasgado e calcinha asa-delta mostrando bem a bunda elencam o figurino da cantora. Uma profusão de homens descamisados com o mesmo corte de cabelo do Ronaldo Fenômeno na copa de 2002 se destacam na figuração, como o avesso de um harém.
A arquitetura de improviso, o chão de terra batida e a poeira do campinho de futebol da quebrada, a viela e o beco compõem o cenário onde a periferia é também personagem. Uma galinha que corre solta e uma roda de samba lembram as primeiras cenas vertiginosas do filme "Cidade de Deus", de 2002, e uma série de referências visuais do começo dos anos 2000 parecem querer passar a limpo um passado não muito distante onde a objetificação do corpo da mulher na mídia e nas artes parecia natural e imutável.
Anitta parece querer inverter a polaridade de poder nas relações de gênero e reinventar o erotismo latino-americano partindo de uma favela carioca. A artista se apresenta como o bendito fruto entre os homens e se abre como uma flor de planta carnívora e que engole o sexo, os machos e toda realidade à sua volta. Com referências vivas em nossa memória, ela nos apresenta uma série de novas possibilidades do olhar.
Olhar masculino é a expressão feminista da segunda metade do século 20 usada para definir a dominação masculina heterossexual na produção imagens e narrativas. Nos últimos séculos, esse suposto olhar universal é o ponto de vista da imensa maioria das criações que consideramos arte.
O que está dentro dos museus —incluindo as mais diversas representações de mulheres nuas— é reflexo direto do olhar da burguesia branca, eurocêntrica e heterossexual sobre a realidade. Anitta se vale de um arsenal de referências do feminino periférico e nos apresenta simbolicamente um espelho que reflete a erotização relacionada ao corpo feminino e ao mesmo tempo a inverte em seu reflexo.
O desejo sexual partindo de uma mulher poderosa no território popular da música ainda causa um certo estranhamento capaz de unir jacobinos e girondinos no Brasil. Anitta ousa pela fartura de pele reluzindo em sua novíssima produção, escancarando os pudores em torno do desejo de uma mulher emancipada sobre o corpo do homem.
A cultura do olhar masculino heterossexual minimiza o caráter universal de olhares femininos e LGBT+ sobre o sexo e os exibe como apêndices da cultura dominante, quando não os invisibiliza. O sexo do ponto de vista da mulher heterossexual, a arte queer e o homoerotismo recorrentemente despem o corpo do homem de roupas e de poder, colocando a nudez masculina e toda sua fragilidade no centro do olhar, lugar historicamente relacionado ao corpo feminino despido.
Despir o homem é também ressignificá-lo. É também mostrar o homem a si mesmo e aos outros. A objetificação do macho dominante pelo sexo nos territórios da cultura heterossexual ainda causa embaraço. dificilmente veremos de homens nus em quantidade nas paredes dos museus, enquanto a nudez da mulher é naturalizada como extensão da principal função do corpo feminino na cultura machista: servir.
Na favela feérica de "Funk Rave", a cantora encarna a figura da patroa, e os homens estão dispostos a servi-la de todas as formas. Assim, Anitta ostenta uma hipnótica catarse para mulheres heterossexuais e homens gays.
O espelho refletido de Anitta apresenta a realidade e a inverte. Reverbera a estética da periferia dos anos 2000, exibe e inverte a favela, remói o sujeito homem, desloca e substitui o objeto de desejo, repercute a coisificação do corpo preto, anuncia e inverte o sexo, aponta e inverte o poder, espelha e inverte a mulher, noticia e inverte a cantora pop.
Assim como "Vênus" —tantas vezes representada nua na história da arte—, Anitta tem um espelho nas mãos. Há um mundo invertido do outro lado do espelho e o reflexo é apenas sua superfície.
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