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LGBTQIA+

Anitta faz do homem um objeto de desejo indo contra a tradição da arte

Cantora oferece catarse para gays e mulheres substituindo centralidade do olhar masculino sobre a mulher

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Francisco Hurtz

"Mulheres precisam estar nuas para estarem nos clipes musicais enquanto 99% dos caras estão vestidos?", disparou o grupo de arte feminista Guerrilla Girls em 2014, em referência aos cartazes que produziram sobre a diferença entre o grande número de figuras de mulheres nuas em pinturas e esculturas e a quantidade bastante inferior de mulheres artistas nos maiores museus do mundo.

Cena do clipe 'Funk Rave', de Anitta
Cena do clipe 'Funk Rave', de Anitta - Reprodução

Nessa estrutura onde mulheres refletem o desejo de sexo e servidão do patriarcado, homens são sempre sujeitos, nunca objetos. A situação parece ser bastante diferente na Tijuquinha, comunidade na zona oeste do Rio de Janeiro onde Anitta gravou seu mais recente videoclipe, ‘Funk Rave’, e causou comoção aproximando progressistas e conservadores com cenas quase ousadas que vazaram durante as gravações, em janeiro.

Um conjuntinho preto e branco em referência à marca Bad Boy e óculos espelhados estilo Juliet na cabeça, um par de chinelos Kenner que se alterna com tamancas coloridas nos pés, shortinho jeans rasgado e calcinha asa-delta mostrando bem a bunda elencam o figurino da cantora. Uma profusão de homens descamisados com o mesmo corte de cabelo do Ronaldo Fenômeno na copa de 2002 se destacam na figuração, como o avesso de um harém.

A arquitetura de improviso, o chão de terra batida e a poeira do campinho de futebol da quebrada, a viela e o beco compõem o cenário onde a periferia é também personagem. Uma galinha que corre solta e uma roda de samba lembram as primeiras cenas vertiginosas do filme "Cidade de Deus", de 2002, e uma série de referências visuais do começo dos anos 2000 parecem querer passar a limpo um passado não muito distante onde a objetificação do corpo da mulher na mídia e nas artes parecia natural e imutável.

Anitta parece querer inverter a polaridade de poder nas relações de gênero e reinventar o erotismo latino-americano partindo de uma favela carioca. A artista se apresenta como o bendito fruto entre os homens e se abre como uma flor de planta carnívora e que engole o sexo, os machos e toda realidade à sua volta. Com referências vivas em nossa memória, ela nos apresenta uma série de novas possibilidades do olhar.

Cena do clipe 'Funk Rave', de Anitta
Cena do clipe 'Funk Rave', de Anitta - Reprodução

Olhar masculino é a expressão feminista da segunda metade do século 20 usada para definir a dominação masculina heterossexual na produção imagens e narrativas. Nos últimos séculos, esse suposto olhar universal é o ponto de vista da imensa maioria das criações que consideramos arte.

O que está dentro dos museus —incluindo as mais diversas representações de mulheres nuas— é reflexo direto do olhar da burguesia branca, eurocêntrica e heterossexual sobre a realidade. Anitta se vale de um arsenal de referências do feminino periférico e nos apresenta simbolicamente um espelho que reflete a erotização relacionada ao corpo feminino e ao mesmo tempo a inverte em seu reflexo.

Cena do clipe 'Funk Rave', de Anitta
Cena do clipe 'Funk Rave', de Anitta - Reprodução

O desejo sexual partindo de uma mulher poderosa no território popular da música ainda causa um certo estranhamento capaz de unir jacobinos e girondinos no Brasil. Anitta ousa pela fartura de pele reluzindo em sua novíssima produção, escancarando os pudores em torno do desejo de uma mulher emancipada sobre o corpo do homem.

A cultura do olhar masculino heterossexual minimiza o caráter universal de olhares femininos e LGBT+ sobre o sexo e os exibe como apêndices da cultura dominante, quando não os invisibiliza. O sexo do ponto de vista da mulher heterossexual, a arte queer e o homoerotismo recorrentemente despem o corpo do homem de roupas e de poder, colocando a nudez masculina e toda sua fragilidade no centro do olhar, lugar historicamente relacionado ao corpo feminino despido.

Despir o homem é também ressignificá-lo. É também mostrar o homem a si mesmo e aos outros. A objetificação do macho dominante pelo sexo nos territórios da cultura heterossexual ainda causa embaraço. dificilmente veremos de homens nus em quantidade nas paredes dos museus, enquanto a nudez da mulher é naturalizada como extensão da principal função do corpo feminino na cultura machista: servir.

Na favela feérica de "Funk Rave", a cantora encarna a figura da patroa, e os homens estão dispostos a servi-la de todas as formas. Assim, Anitta ostenta uma hipnótica catarse para mulheres heterossexuais e homens gays.

O espelho refletido de Anitta apresenta a realidade e a inverte. Reverbera a estética da periferia dos anos 2000, exibe e inverte a favela, remói o sujeito homem, desloca e substitui o objeto de desejo, repercute a coisificação do corpo preto, anuncia e inverte o sexo, aponta e inverte o poder, espelha e inverte a mulher, noticia e inverte a cantora pop.

Assim como "Vênus" —tantas vezes representada nua na história da arte—, Anitta tem um espelho nas mãos. Há um mundo invertido do outro lado do espelho e o reflexo é apenas sua superfície.

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