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Livros oriente médio

Primeira fotógrafa da Palestina captou a beleza de um mundo aniquilado

Livro narra vida de Karima Abbud em tom fabular, contrastando com as tragédias que transformaram o mundo árabe

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Laura Erber

Escritora, editora e coordenadora do programa de pós-doutorado do Instituto Internacional de Estudos Asiáticos da Universidade de Leiden

Biografia de um Olho

  • Preço R$ 67 (164 págs.)
  • Autoria Ibrahim Nasrallah
  • Editora Tabla
  • Tradução Safa Jubran

Um livro que percorre a história da fotografia no mundo árabe e, ao mesmo tempo, reflete sobre os processos de construção do olhar parece inicialmente se adequar mais ao gênero ensaio do que ao romance biográfico. Entretanto, é com grande interesse e forte comoção que o leitor percorrerá "Biografia de um Olho", de Ibrahim Nasrallah, que a editora Tabla lança com tradução de Safa Jubran.

Mulheres de cabeça coberta estão reunidas no meio de um campo
Fotografia de Karima Abbud estampa a capa de 'Biografia de um Olho' - Divulgação

Nasrallah, um dos mais importantes autores árabes de sua geração, nasceu em Amã, em um campo de refugiados palestinos expulsos pela Nakba. Neste romance, que integra a sua "Trilogia dos Sinos", conseguiu a façanha de aliar a história singular da vida da fotógrafa Karima Abbud a uma inspiradora meditação estética sobre a criação de imagens.

Se no início do livro Abbud acredita que "cada fotógrafo tem o seu próprio sol em seus olhos" e que as famílias se deixam fotografar "arrebatadas pela capacidade da fotografia em manter seus filhos crianças", com o passar dos anos a fotografia passa a ser o seu espaço vital, e uma afirmação contundente do valor de cada vida.

A vida que o livro narra, em tom às vezes fabular e cristalino, contrasta com o peso das tragédias que vão transformando a Palestina e tornando a vida de seus habitantes uma sucessão de eventos sinistros. A história transcorre nos anos do mandato britânico e enlaça o microcosmo da família Abbud ao contexto sociopolítico da época.

Nascida em Belém em 1893, Abbud foi introduzida na magia fotográfica através dos fotógrafos que visitavam a igreja protestante onde seu pai, Said Abbud, era reverendo. Era fluente em árabe, alemão e inglês, estudou literatura árabe na Universidade Americana de Beirute, e ao longo da vida conheceu fotógrafos importantes que ainda hoje são desconhecidos entre nós.

O livro revela uma sociedade cosmopolita e dinâmica, onde alemães, libaneses, turcos e armênios estavam em contato. Com o fim do Império Otomano, Karim, o querido irmão da protagonista, é capturado por soldados ingleses por trazer no bolso um volume de "Os Sofrimentos do Jovem Werther" em alemão. Acaba sendo preso e torturado como espião.

Parte da narrativa acompanha o desenvolvimento da tuberculose que Karim contrai quando prisioneiro e que depois se espalha pela família. Assim, a história da menina que queria fotografar a noite torna-se a história do arquivo fotográfico da beleza de um mundo aniquilado —primeiro pela ocupação inglesa e, em seguida, pela colonização sionista, que Abbud testemunhou até 1940, quando também foi levada pela tuberculose.

Os estudiosos da história da fotografia a reconhecem como a primeira fotógrafa mulher do mundo árabe e da Palestina, para onde sua família migrou em meados do século 19, vindo do sul do Líbano. Abbud foi a primeira mulher árabe a se profissionalizar nesse ofício, tendo aberto seu próprio estúdio ainda nos anos 1920.

Mas o livro mostra como seu pioneirismo e determinação iam além do campo artístico —ela aprendeu a dirigir e teve seu próprio carro numa época em que isso era considerado uma façanha. Ser mulher permitiu-lhe realizar fotografias de teor mais sensível, tendo conseguido acesso ao interior de casas e a outras mulheres que não se deixariam fotografar por nenhum homem.

Apesar do título, o livro não narra a história de Abbud dando exclusividade ao olho. Pelo contrário, mostra que as operações visuais são mais complexas do que o fato fisiológico de sermos capazes de enxergar. Nessa amálgama de romance de formação e reflexão poética sobre o ato fotográfico, outros sentidos são também convocados.

Há o som real demais dos gritos do irmão tuberculoso, o silêncio do violão da irmã Lídia, há vozes atormentando a mãe em pesadelos e há o som dos pensamentos, que às vezes escapam da mente dos personagens como palavras que flutuam entre a imaginação e o efetivamente dito.

Na costura de fatos, ficção e reflexão, temos um livro que pode ser lido de diferentes formas, mas em todas elas ficará claro o poder que a escrita literária tem de tocar o coração da história. Mostra que a fotografia existe não apenas na encruzilhada entre magia e técnica, mas entre a proximidade e a distância, entre a beleza única de cada rosto humano e o documento histórico de todo um povo em extinção.

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