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a feira do livro

'Boate Kiss argentina' inspira livro que oferece sensibilidade ao trauma

Escritora Camila Fabbri, convidada da Feira do Livro, reúne lembranças da tragédia que matou 200 pessoas no país vizinho

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Shisleni de Oliveira-Macedo

Educadora e tradutora

O Dia que Apagaram a Luz

  • Preço R$ 70 (160 págs.)
  • Autoria Camila Fabbri
  • Editora Nós
  • Tradução Silvia Massimini Felix

Os celulares tocavam sem parar e ninguém atendia. Na noite de 30 de dezembro de 2004, a discoteca República Cromañón pegou fogo durante um show da banda Callejeros.

As famílias, ao ver as notícias na TV, ligavam para suas pessoas queridas que não estavam em casa, na esperança de que atendessem e dissessem que estava tudo bem. Muitas dessas pessoas eram adolescentes.

foto em preto e branco de mulher branca de braços cruzados
Camila Fabbri, autora de 'O Dia em que Apagaram a Luz', que estará na Feira do Livro - Sebastián Arpesella/Divulgação

Essa tragédia aconteceu em Buenos Aires, quase uma década antes de outra muito similar na Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Em ambas as situações, durante um show em um espaço fechado, fogos de artifício incendiaram uma estrutura para a acústica, presa ao teto. Uma fumaça tóxica se espalhou rapidamente e mais de 200 pessoas morreram.

Na época, Camila Fabbri tinha 15 anos. Callejeros, composta por jovens de 20 e poucos anos, era uma das suas bandas favoritas. Eles iriam fazer três dias de show seguidos, durante as férias de verão, para apresentar seus três discos na mais nova casa noturna da cidade. Era imperdível. Ela e seus amigos não pensavam em outra coisa.

No último dia, o show durou poucos minutos. Fabbri não estava lá: tinha ido no dia anterior. O incêndio marcou toda uma geração, trazendo para adolescentes, que em geral se sentem invencíveis, um contato cortante —e precoce— com a finitude.

E é disso que trata o livro "O Dia que Apagaram a Luz", que Fabbri apresenta ao Brasil agora na Feira do Livro, em São Paulo: a relação dessas pessoas com a catástrofe. Quais as marcas deixadas por um desastre ao passar dos anos?

O livro é composto de capítulos curtos, escritos a partir dos encontros da autora, já perto dos 30 anos, com seus amigos e amigas de adolescência, aqueles com quem havia compartilhado o movimento "rolinga", de amantes do 'rock and roll' argentino nos anos 2000.

É interessante como o texto se constrói de maneira não linear, fragmentada, como um coro de muitas vozes —algumas delas ainda meio roucas. Às vezes parece um enfileiramento de várias experiências e maneiras de contar aquele dia: onde estavam, o que estavam fazendo quando receberam a notícia ou mesmo como saíram da Cromañón naquela noite.

Em outros momentos, é uma recoleção de pequenos relatos sem identificação, como um telefone cheio de mensagens de voz. Há quem questione a utilidade de tudo isso, inclusive de um "não relato" de alguém que parece se ferir com a pergunta: "Não sei para que você quer saber isso e não me interessa".

Apesar do tema denso, "O Dia em que Apagaram a Luz" não é mórbido, não fica remoendo as descrições terríveis da tragédia —até porque a televisão já havia feito essa entrega incessante de imagens que ninguém queria ver.

Ao contrário, é muito sensível. Traz um exercício de reconexão pela palavra, de reconstrução daquela memória triste transformada em motivo de reencontro, regado a café com leite ou mate.

Como em uma peça, algumas vezes dividida em monólogos, acompanhamos a narrativa desse retorno aos momentos em torno do evento traumático que marcou aquelas pessoas. No fim, o que Fabbri estava realmente perguntando a elas era como a vida havia continuado depois do que aconteceu naquela noite. É isso que parece lhe interessar de verdade.

Não há menções aos longos processos judiciais que se seguiram ou aos infinitos debates para encontrar culpados. O que há é uma preocupação muito maior com os efeitos do que com as causas. Como se fosse uma experimentação literária de justiça restaurativa em que, em vez de apenas procurar a quem punir, a atenção se volta a cuidar e sanar quem convive com o trauma.

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