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Ana Castela e Simone Mendes testam os limites do templo do sertanejo

Shows com discursos feministas em Barretos ameaçaram o domínio conservador do gênero mais tocado do país

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Barretos

Alguns homens se sentiram incomodados ao assistir ao show de Simone Mendes na Festa do Peão de Boiadeiro, em Barretos, na última sexta-feira. Enquanto a cantora bradava um longo discurso sobre como uma mulher deve ser tratada no casamento, teve gente xingando e pedindo que ela voltasse a cantar.

A cena foi um reflexo de movimentos estéticos e discursivos que vêm transformando o sertanejo e ficaram latentes na maior festa do peão do Brasil. O evento no interior de São Paulo, ao mesmo tempo um rodeio e um festival de música, começou na semana passada e vai até o próximo domingo (25).

Ana Castela em show na Festa do Peão de Boiadeiro, em Barretos, no interior de São Paulo
Ana Castela em show na Festa do Peão de Boiadeiro, em Barretos, no interior de São Paulo - Rafaela Araújo/Folhapress

Produto do feminejo, movimento de mulheres que cantam sobre romances do ponto de vista feminino, Mendes fez um show que foi mais carnavalesco do que sofredor. Como uma Ivete Sangalo do sertanejo, ela pulou, dançou, pediu que o público se beijasse e quebrou qualquer decoro com sua espontaneidade. No discurso, explicou o que tem de ser feito para manter a vida sexual ativa no casamento.

Quem também não é unanimidade é Ana Castela, que no sábado e na madrugada de domingo deixou abarrotada a arena. Com 20 anos, ela é a artista mais ouvida do Brasil no Spotify e funciona como uma espécie de ponte entre o sertanejo e estilos mais urbanos —uma menina do campo que também é moderninha.

Febre entre adolescentes e crianças, Castela virou uma superestrela do pop, só que de chapéu e bota. Foi a única no evento que teve dançarinos no palco, além de um cavalo prateado gigante. Seu repertório tem acenos a todo mundo —sucessos românticos alinhados ao sertanejo atual, modões que dedicou ao pai para fisgar a velha guarda, pops com narrativas pessoais que lembram Taylor Swift e várias músicas calcadas no funk.

Castela não é funkeira e nem tenta se passar por uma. Mas utiliza códigos dessa música, muito ligada ao pop no Brasil, em suas letras sobre paquera e desejo. E não foram só as batidas fortes que friccionaram o público que ocupava a arena, com capacidade para 50 mil pessoas. Seu discurso é uma quebra na caretice caipira —em vez da tristeza do chifre, entra o prazer do sexo cantado sem pudor.

As duas cantoras foram vozes destoantes de um gênero ainda dominado por homens, regado a álcool e abastecido pelo sofrimento amoroso. Não são queridas universalmente em Barretos como Jorge & Mateus —ícones do sertanejo universitário com uma carreira de sucesso ininterrupto há anos—, mas soaram como uma novidade e geraram reações mais acaloradas do que gente como Bruno & Marrone —entidades sertanejas, mas que estão lá literalmente todo ano, há décadas.

O show de Jorge & Mateus, aliás, talvez tenha sido o mais animado de todo o primeiro fim de semana. Eles dispararam sucessos lançados de 2007 a 2024, mostrando que já têm estrada para ser consagrados, mas ainda não tocaram tanto ao ponto de o seu repertório ficar saturado.

Se Bruno & Marrone já representam o passado e Jorge & Mateus são o presente, Ana Castela pode caminhar para se tornar o futuro do sertanejo. Não é um trajeto simples: sua música promove o encontro de universos nem sempre convergentes. Em vez de ampliar seu alcance, ela pode acabar num limbo —caipira demais para o funk, moderninha demais para o sertanejo.

Simone Mendes caminha em paralelo com uma carreira solo curta, mas já de grande alcance. Se Maiara & Maraísa, que cantaram na madrugada de sábado, tocam o legado do feminejo que construíram ao lado de Marília Mendonça, talvez seja Simone quem hoje assuma o posto de maior cantora do subgênero, vago desde a morte de Mendonça, em 2021.

Mendes e Castela, com seus shows, representam o frescor de um sertanejo que está em profunda transformação. Nesse movimento, elas causam fricções em estruturas sólidas como a de Barretos —um templo hoje conservador e bolsonarista, com seus quase 70 anos de existência.

O jornalista viajou a convite do festival 

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