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18/06/2010 - 16h07

"Escrever sobre a morte é escrever sobre a vida", disse Saramago em 2005

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MARCOS STRECKER
DE SÃO PAULO

Em 2005, José Saramago falou com a Folha por ocasião do lançamento de seu livro "As Intermitências da Morte". Leia abaixo a íntegra da reportagem.

*

"Lamento comunicar-lhe que a sua vida terminará no prazo irrevogável e improrrogável de uma semana, desejo-lhe que aproveite o melhor que puder o tempo que lhe resta, sua atenta servidora, morte."

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Veja fotos do escritor José Saramago

Essa é a carta que alguns cidadãos de um país fictício passaram a receber depois que a morte entrou e saiu de uma greve inédita --e antes que tivesse a sua rotina definitivamente perturbada por um violoncelista que gosta da "Suíte nº 6 para Violoncelo" de Bach, opus 1.012, em ré maior.

Assim, em poucas palavras, é o novo romance de José Saramago, 82, "As Intermitências da Morte", que teve lançamento mundial anteontem em São Paulo, com a presença do autor.

Saramago, o único Prêmio Nobel da língua portuguesa, disse em entrevista à Folha que "já esteve na hora" de o Brasil ganhar o prêmio diversas vezes. Ele tem um nome brasileiro em mente para a principal distinção literária do mundo. Mas não revela qual.

Apontado pelo crítico literário Harold Bloom como o maior romancista vivo, Saramago nega que o romance --gênero ao qual retorna agora-- esteja em crise.

O escritor fala da crise política no Brasil, dizendo que o governo Lula passou do imobilismo para a paralisia. E, principalmente, Saramago desmonta o quebra-cabeça tanatológico de sua última obra, uma história de amor cheia de humor e ironia. E diz que tipo de mulher a morte é.

Armando Franca/AP
O escritor português José Saramago
O escritor português José Saramago, que morreu nesta sexta nas Ilhas Canárias, aos 87 anos

Folha - Como surgiu a ideia de um livro sobre a morte?

José Saramago - Eu estava a reler "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge", de Rainer Maria Rilke. Ele fala muito da morte, são páginas realmente extraordinárias. De repente, juntou-se isso. Uma situação em que a morte não matasse. O que aconteceria se...? Essa pergunta, aliás, está presente em todos os meus romances. Sempre, em qualquer romance meu, essa questão se põe. E, nesse caso, foi simplesmente: e se a morte deixasse de matar?

A sua morte é bem diferente, por exemplo, da morte de Proust, ou da morte retratada por Bergman em "O Sétimo Selo"...

Ela é diferente, claro. É diferente da visão que se tinha da morte na Idade Média, em que vivia-se dentro dos cemitérios. Na França, as pessoas viviam dentro dos cemitérios. Isso parece completamente absurdo, mas aconteceu. O contrário disso é a preocupação que temos hoje de fazer de conta que a morte não existe. Obliterá-la, tirá-la da paisagem. Isso é o que nós fazemos. Os funerais já não atravessam as cidades. As carruagens fúnebres, puxadas a cavalo, esses cavalos já não puxam essas carruagens. Há para mim essa preocupação com a morte ao longo do tempo. A minha contribuição para essa matéria consiste em olhar para ela com certa ironia. Estou a tentar rir-me de mim mesmo aí, como ser mortal que sou e consciente de que estou a brincar com a pobre, porque, evidentemente, um dia destes ela pega-me.

O senhor tinha alguém em mente quando imaginou a figura da morte?

Não, não tinha. Quer dizer... Teria feito da morte mulher, porque a morte não é masculina. Agradou-me muito a ideia de que, pelo menos no nosso país e nesses do lado de cá, digamos latinos, creio, a morte é "uma" morte. A morte para mim é feminina.

Recentemente Lygia Fagundes Telles e outros escritores reclamaram da falta de distinção de um brasileiro com o Prêmio Nobel. O sr. tem algum "candidato"?

São os critérios da Academia Sueca. Eu não creio que valha muito a pena nos indignarmos e protestarmos. Sim, "está na hora de", claro que sim. "Esteve na hora de" com João Cabral de Melo Neto. "Esteve na hora de" com Jorge Amado, "esteve na hora" no caso de Carlos Drummond de Andrade, "esteve na hora de" com Manuel Bandeira, "esteve na hora de" com Guimarães Rosa... Agora, eu penso que sim, que está. Se me perguntam se eu vejo algum escritor... Vejo, mas não vou dizer... Oxalá que o ano que vem o Prêmio Nobel seja para um escritor brasileiro. Com certeza faríamos um dueto. O dueto da língua portuguesa.

O senhor acompanhou as notícias do referendo que ocorreu nos últimos dias no Brasil?

Acompanhei. Não me chocou. Vivemos num estado de insegurança geral. É natural que as pessoas pensem que, se tivessem uma arma para defender-se, isso lhes conferiria maior segurança. Mas creio que é uma falsa segurança. Por outro lado, [o referendo] foi um disparate. Neste momento, o Brasil numa crise política séria, gravíssima. Como se aqui todas as coisas corressem o melhor possível... O referendo não muda nada na situação em que as coisas se encontravam. Agora, se o Brasil quis imitar os EUA e fazer da posse de arma uma espécie de novo estatuto de cidadania, parece um bocado infeliz, não é?

No Fórum Social Mundial em Porto Alegre, em janeiro, o senhor já fazia críticas à esquerda e ao governo Lula. O que o senhor acha da crise atual?

A eleição do Lula foi uma luz que atravessou o mundo. Mas depois de todo esse fogo de palha, aquilo que assistimos depois justificou que eu tivesse feito alguma crítica em Porto Alegre.

O senhor teve algum contato com alguém do governo depois dessas críticas?

Não, não. Quer dizer, eu encontrei muito recentemente, há poucos dias, em Salamanca, o presidente Lula. Conversamos um pouco, dissemos um ao outro o que gostaríamos de conversar um dia destes, mas não vejo como seja possível. Assistimos a uma espécie de imobilismo na ação governativa. E agora, depois do que aconteceu com o PT e quanto a esse "mensalão" e todas essas coisas, já não é imobilismo, já é paralisia.

Paralisia?

É a sensação que dá, porque é evidente que o campo da ação do presidente está limitado. Depois do que aconteceu nesse processo absolutamente lamentável de uma corrupção vertical e horizontal... Não sei como é que o Brasil vai sair disso. É lamentável. E agora a minha pergunta é essa: servirá isto de lição? Estávamos tão contentes... O balde de água fria, a frustração, a decepção é muito difícil de engolir.

Voltando à sua obra. O senhor transita em vários gêneros. O crítico literário Harold Bloom diz que o senhor é atualmente o grande nome do romance, de um gênero que está em extinção.

Eu não creio que o gênero romance esteja em extinção. O romance extingue-se e renova-se todos os dias. Já não podemos repetir o romance tal como se entendia ele no século 19. Eu às vezes digo que o romance deixou de ser um gênero para passar a converter-se num espaço literário, exatamente para tirar-lhe essa classificação rígida. No romance hoje cabe tudo. Quanto à outra opinião de Harold Bloom a meu respeito, lisonjeia-me muito, mas não sei se é verdade.

O sr. descreve a morte como uma mulher de certa forma charmosa e sedutora. Como ela é fisicamente?

Bem, como diriam os franceses, é uma "fausse-maigre" [falsa magra]...

Por que falar da morte com humor? E como uma história de amor?

Creio que, em primeiro lugar, para falar da morte é preciso estar vivo. Os mortos não falam da morte, embora, em princípio, devessem saber tudo sobre ela. Mas é que nós julgamos, os vivos, que sabemos alguma coisa da morte dos outros. Não chegaremos a saber nada, nem sequer da nossa própria morte. Não creio que venhamos a saber alguma coisa da morte que tenha alguma utilidade para os vivos. Porque, mesmo que soubéssemos tudo a respeito dela, o simples fato de estarmos vivos nos impede de aprender algo que tenha que ver com a morte. Seria necessário uma demonstração racional sobre o que nos acontece. Não o que nos acontece na morte, o que nos acontece depois da morte.

Tenho isso, enfim, bastante claro. Desapareceu a matéria e com ela desapareceu tudo aquilo que, durante um tempo e consensualmente, achamos que não é matéria --que chamamos de espírito, alma ou coisa que o valha.

Às vezes pessoas vivem como uma espécie de enamoramento da morte. Levam a vida toda como que namorando a morte. Eu não pertenço a esse grupo. Não namoro a morte. Escrevi sobre ela. Terei escrito sobre a morte realmente? No fundo, acho que não. Porque, em primeiro lugar --e isso parece bastante óbvio--, escrever sobre a morte, no fundo, é escrever sobre a vida. Porque é desde o ponto de vista da vida que estamos a escrever sobre a morte.

Por outro lado, no caso concreto deste romance, além dessa ironia, desse humor que resulta até da própria situação, eu poderia cair num tenebrismo aflitivo que poderia chegar a tirar o sono dos leitores, ao estilo de Edgar Allan Poe. Parece, nos livros que ele escreveu, que tinha fascinação pela morte. Como quem diz: a morte tem de vir, então que venha já. Para ele, é algo nesse espírito. No meu caso, não. É um jogo. Imaginar que a morte efetivamente está aí, como representação.

Se nós nunca tivéssemos imaginado representações da morte, vivíamos simplesmente com a ideia de que temos de morrer e não "fulanizaríamos" isso num esqueleto ou numa coisa com um lençol branco, posto por cima, essas imagens tópicas. Mas eu creio que, no fundo, isso tem que ver com as circunstâncias em que o livro nasce. O livro não nasceu porque eu tivesse decidido "vou escrever agora sobre a morte".

 

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