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João do Rio

Crônica de João do Rio de 1914 conta como telefone atrapalhou casamentos e políticos

Escritor será homenageado na Flip deste ano

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João do Rio

Foi jornalista, escritor, tradutor e teatrólogo brasileiro (1881-1921)

[RESUMO] A crônica "O Telefone", reproduzida abaixo, foi publicada originalmente na Gazeta de Notícias, em 20 março de 1914. Será editada agora em livro pela primeira vez, na coletânea "O Fim do Maxixe: João do Rio e Outros Pseudônimos de Paulo Barreto — Crônicas", organizada por Juliana Bulgarelli, a ser lançada pela Chão Editora em setembro. Com a fina ironia que lhe era característica, João do Rio, um dos grandes cronistas brasileiros, comenta como o telefone atrapalhou a vida de maridos, amantes e políticos. O escritor será homenageado pela Flip deste ano.

O telefone serve para uma porção de coisas. Serve em geral para se falar rapidamente, para fazer desaparecer as distâncias. O telefone é uma dessas descobertas, como dizia a Cecil Sorel, "sobretudo útil ao conforto"…

Eu concordaria com a grande beleza efetiva de Paris, nas linhas gerais. No detalhe, o telefone é, às vezes, inconfortável e irritante. Quando, por exemplo, passa uma pessoa meia hora a gritar: "Está lá? Está lá?". E a demoiselle responde, tranquila: "Está em comunicação!".

Quando, por exemplo, as senhoras das nossas relações sabem falar ao telefone… Ah! O telefone é bem um novo instrumento de martirização masculina nas mãos encantadoras dessas senhoras. O telefone serve às damas para não largarem as vítimas, nem a distância.

O escritor e jornalista João do Rio em 1916 - Reprodução/Acervo Instituto Moreira Salles

Com o desenvolvimento do uso do telefone, nem os maridos, nem os amantes poderão mais trair. Fica o direito reservado apenas ao sexo suave —porque se nós não tocamos para a modista ou a costureira a saber se madame já chegou, elas acompanham os passos dos cavalheiros a quem dão a honra da atenção, graças apenas ao telefone.

Conheci uma senhora, que do seu quarto de vestir, acompanhava o marido telefonando para todos os pontos onde ele devia estar, a certas horas. O pobre vivia na observação daquele horário a chamadas telefônicas —e só podia enganar a esposa, à pressa e nos intervalos…

Mas estas minhas banais frases sobre o telefone vêm a propósito de mais um aspecto da infâmia da tremenda gente que neste país, por não ter o que fazer, insulta e pretende agoniar os outros.

Os senhores conhecem a carta anônima? O telefone substitui esse atentado da torpeza humana, com grandes vantagens. Um malandro não tem o que fazer. Recorre à lista dos assinantes da telefônica e chama as casas que bem lhe parecem.

Ai dos que não lhe caíram no gosto! Um ministro dizia-me, há tempos, que jamais tivera coragem de confessar quem era, pelo telefone, com medo aos insultos. Em geral o criado respondia. E mesmo sabendo quem lhe falava, o ministro, hoje presidente de Estado, falava com a voz disfarçada, sem nunca dizer o seu nome.

"Nada! Mesmo pelo telefone não é agradável receber insultos…"

Os homens de uma certa notoriedade têm aqui, além de outros trabalhos, o de receber desaforos e esse é tão abundante que o acréscimo do telefone deve deixá-los indiferentes. Mas agora fazem também a infâmia com senhoras inofensivas.

"Alô? É mesmo a sra. Fulana? Venha já ao aparelho. É urgente. Ah! É a própria? Escute. Seu filho acaba de ser preso…"

Ainda ontem, uma digna senhora, em lágrimas, veio contar-nos que lhe tinham dito isso pelo telefone. Era uma pessoa nossa amiga —o filho, que apareceu pouco depois. Não tivera prisão alguma. E a pobre dama exclamava: "Para que agoniar assim uma senhora! Mas eu nunca fiz mal a ninguém…".

A imagem apresenta uma caricatura de João do Rio, representado como um homem em perfil, usando um chapéu e um paletó com padrão quadriculado. Ele está segurando um cigarro e exalando fumaça. O fundo é de cor bege, e a assinatura do artista, chamado Gil, está visível no canto inferior direito, datada de 1904
Caricatura do escritor João do Rio de 1904, assinada pelo artista Gil - Reprodução

Certo, ela nunca fez mal a ninguém. Mas a infâmia não cuida disso. E o telefone é hoje, nesta extraordinária terra, assaz cheia de canalhas, um dos principais agentes do insulto anônimo, da calúnia, enfim da série infinita dos crimes covardes, dos crimes dos eunucos —os crimes que não levam à cadeia os miseráveis autores escondidos numa sombra feita de lama…

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