Precisamos de revolução espiritual para salvar o planeta, diz fotógrafo

Documentário de Yann Arthus-Bertrand, 'Legado: Nossa Herança' mostra impactos avassaladores da mudança climática

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Poluição industrial retratada em cena do documentário 'Legado', de Yann Arthus-Bertrand Divulgação

Leão Serva

Doutor em comunicação e semiótica pela PUC-SP e diretor internacional de Jornalismo da TV Cultura, em Londres

[RESUMO] Em entrevista à Folha, renomado fotógrafo francês fala de "Legado: Nossa Herança", documentário sobre a emergência climática que estreia em plataforma, e da indiferença de nossa civilização diante do risco de extinção do planeta. Embora preocupado com o futuro, diz não ter tempo para ser pessimista e, aos 77 anos, se dedica a grandes projetos, como o ativismo ambiental e um filme sobre imigrantes sem documentação na Europa.

Na margem do Sena, Yann Arthus-Bertrand chorou. Em sua mesa de trabalho em uma casa sobre o rio que banha Paris, pergunto como se sente diante das grandes tragédias climáticas ocorridas neste ano. Ele suspira profundamente e chora. Depois de dez anos repetindo o bordão "não temos tempo para ser pessimistas", está visivelmente deprimido.

Bertrand voou sobre 130 países para fotografar "A Terra Vista do Céu", nome de seu livro que vendeu mais de 4 milhões de exemplares. Ao longo de cinco décadas, assistiu à degradação da paisagem do planeta. Agora, sente uma absoluta impotência: os meios de comunicação não conseguem convencer a opinião pública da iminência do "fim do mundo".

Homem de cabelos brancos com camiseta preta e camisa azul por cima, com rio ao fundo
Yann Arthus-Bertrand, fotógrafo e diretor do documentário 'Legado: Nossa Herança' - Divulgação

A tristeza não diminuiu a rotina intensa de trabalho. Antes da entrevista, em 11 de outubro, ele tinha acordado às 3h para fotografar os trabalhadores no mercado de flores de Paris. As imagens são parte de um projeto ciclópico: fazer o retrato de 40 mil franceses de todas as classes, idades e regiões para dar "cara ao censo populacional". A esta altura, já fotografou 15 mil pessoas.

Enquanto lança no Brasil o filme "Legado: Nossa Herança" na plataforma Aquarius, sobre a emergência climática, Bertrand edita um documentário sobre outro drama mundial: a migração de populações. Está arcando com todos os custos da produção. "Nenhum estúdio, nenhum patrocinador, ninguém quer participar de um filme sobre esse assunto." O novo longa é todo filmado com celulares, para ter a agilidade de um "road movie" e poder entrevistar sem constrangimento pessoas que vivem ilegalmente em países estrangeiros.

Um dos fotógrafos mais famosos do planeta, ele se tornou um ativista ambiental. Nessa condição, virou interlocutor do papa Francisco (suas fotos ilustram a encíclica "Laudato Si", sobre meio ambiente), do secretário-geral da ONU, António Guterres, e do ex-vice-presidente dos EUA e Prêmio Nobel da Paz Al Gore.

Arthus-Bertrand é membro da tradicionalíssima Academia de Belas-Artes da França. Nessa condição, fez o discurso de saudação a Sebastião Salgado na posse do brasileiro na instituição, em 2017. Como Salgado, tem se dedicado a reflorestar e renaturalizar uma fazenda particular, na França.

O sr. ainda está voando e fotografando? Parei de filmar o céu de helicóptero há uns cinco anos. Agora, com os drones, não é mais preciso pegar helicóptero. É muito mais barato, muito mais cômodo, e até parei de voar. Eu não viajo mais. Acho que a Greta Thunberg [ativista ambiental sueca] me convenceu a parar de andar de avião.

Em quantos países esteve? Quantos quilômetros voou? Isso é meio complicado, porque já estive, acho, em 130 países, mas isso não quer dizer muito. Você pode ir 20 vezes a países como a Rússia, o Canadá, os Estados Unidos sem conhecer o país. Não é como criança que coloca percevejos no mapa nos lugares onde esteve. Não funciona assim.

Viajei muito, muito. É engraçado, porque tenho uma espécie de curiosidade instintiva para descobrir o mundo. Hoje em dia, todo o mundo tem uma foto da casa vista do céu no celular, com o Google Earth. Na época em que comecei a fotografar, era algo excepcional e muito novo. Quando você mostrava às pessoas a foto da própria casa, elas ficavam maravilhadas.

Como começou a fazer essas viagens? Foi quando fazia um estudo sobre o comportamento dos leões no Quênia, onde morei três anos. Estudava os leões e, para ganhar a vida, era piloto de balões. Foi naquela época que descobri a importância da fotografia aérea para o meu estudo.

Costumo dizer que os leões me ensinaram fotografia. Estávamos preparando um doutorado, minha esposa Anne e eu. Ela fazia os textos e eu tirava as fotos. Eu fazia a parte fácil [risos]. A foto traz uma informação que o texto não transmite. Foi assim que entendemos como os leões interagiam, e a fotografia aérea me fez compreender o mundo melhor que visto do chão.

Apesar da beleza das imagens ou, exatamente por isso, seu filme "Legado" é bastante triste... [Suspira, os olhos ficam marejados] É sempre difícil falar sobre isso, porque todos os cientistas falam conosco sobre o fim do mundo. Se você ler os números, se souber ler, se tentar entender o que eles dizem, eles falam da "sexta extinção". É algo que penetra no meu corpo, à medida que envelheço, porque tenho netos. Fiquei mais sensível do que antes.

Mas tenho muita dificuldade em aceitar essa indiferença total, indiferença da nossa civilização diante do que está acontecendo. Não queremos acreditar no que todos sabemos. Nós sabemos! É dito todos os dias! Milhares de cientistas dizem isso! E continuamos como antes!

O ano passado foi o ano mais quente e foi o ano em que mais consumimos energia fóssil! Os combustíveis fósseis estão nos matando! Matando a vida na Terra! E estamos em um sistema de civilização em que não pode haver crescimento sem energia fóssil. Portanto, estamos completamente presos em um sistema e precisamos de uma revolução!

Não será uma revolução política, porque os políticos são apenas o espelho daquilo que somos. Não são eleitos para nos irritar, para nos dizer "não, vocês não têm o direito de fazer isso", para nos fazer sentir culpados. Então, a visão eleitoral é muito curta.

Não será uma revolução econômica, porque a economia só quer crescimento. Não será uma revolução científica, porque sempre pensamos que a tecnologia nos salvaria, mas não, a tecnologia não salva. Não vamos cobrir o mundo com painéis solares ou turbinas eólicas.

Então, tem que ser uma revolução espiritual: o que posso eu, como homem, fazer? O que sou, qual é a minha missão? Muitas vezes, termino as minhas conferências mostrando meu primeiro neto —eu tenho sete— em meus braços. Ele tem confiança em mim, e digo a mim mesmo: qual é o futuro desse menino que confia em mim, qual é o futuro que estamos deixando para ele?

Infelizmente, todos estamos deixando para essas crianças um futuro difícil e complicado. Cada um faz o que pode, eu faço o que posso, mas não é o suficiente.

O sr. já disse antes que não tinha tempo para ser pessimista. Agora está pessimista? Acho que não dá para viver no pessimismo. Eu costumava dizer: é tarde demais para ser pessimista. Gosto muito dessa frase. Não temos tempo para ser pessimistas. Ainda hoje digo a mesma coisa.

Mas por que não sou pessimista? Não sou pessimista porque vivo em um ambiente onde todos ao meu redor estão engajados. Na minha fundação, todos estão comprometidos. Eu costumo dizer que, se meu neto tivesse câncer no cérebro, e houvesse apenas 5% de chance de salvá-lo, eu me agarraria a esses míseros 5%.

A vida ainda é incrivelmente bela. Aos 77 anos, você fica um pouco mais perto das horas ruins. Tem que aproveitar a vida ao máximo. Acho que não tenho direito de ser pessimista. A vida é linda demais, e, acima de tudo, tenho muita sorte de fazer este trabalho.

O sr. está trabalhando em um novo filme? Estamos fazendo um filme sobre migrantes. Temos projetos fantásticos, não tenho direito de ser pessimista. Simplesmente tenho que seguir em frente. O que está acontecendo hoje em Israel, na Ucrânia, na Armênia, mostra o contrário, essa "banalidade do mal", como falou Hannah Arendt.

Temos que sair disso. Eu não sou crente. Estou fazendo um livro com o papa. Ele acaba de lançar uma encíclica, e eu estou ilustrando essa encíclica. Acabei de fazer uma grande entrevista com uma pessoa do Vaticano. Eu disse: "Não sou crente, mas acredito no bem e no mal". Talvez não tenhamos entendido o suficiente para que todos possamos fazer o bem, e fazer o bem o torna melhor.

Quando fiz o filme "Humano: uma Viagem Pela Vida" (2015), o melhor que já fiz, fomos ver pessoas do mundo inteiro, perguntando a elas sobre o sentido da vida. Visitei uma senhora em Madagascar e perguntei qual era o maior sonho dela. Ela me contou algo em que penso todos os dias: "Gostaria de morrer com um sorriso".

Que inteligente, que brilhante, porque todos vamos morrer um dia. Ela teve 16 filhos, seis dos quais morreram, uma vida extremamente complicada, mas ela entendeu que o que fazia todos os dias lhe permitiria morrer com um sorriso. Talvez ela não consiga, assim como eu não vou conseguir, mas podemos pensar: "O que posso fazer pelos outros?".

Sempre estive em busca da beleza. Comecei "A Terra Vista do Céu" buscando a beleza: os rios mais lindos, as mais lindas florestas, animais, cidades... Mas não é essa beleza que vai mudar o mundo, que vai salvar o mundo. O que vai salvar o mundo é o amor, simplesmente. Pode parecer ridículo, mas cada vez mais me apego a isso.

No seu filme, quando mostra os maus tratos aos animais, o sr. diz: "Não podemos ter dois corações, um para homens e outro para animais". Ao ver episódios como as guerras atuais, não parece que alguns têm um terceiro coração, para o nacionalismo? Para mim, o nacionalismo é a praga da humanidade. A Terra não pertence a um francês ou brasileiro. Nós somos humanos, e todos os homens são meus irmãos. Tenho viajado muito e, quando você viaja, você é cidadão do mundo, não é cidadão do seu país. Não entendo esse nacionalismo, como no Brasil ou na França... A geografia, alguém disse, é a história da guerra. É uma pena. A minha geografia é uma geografia do amor...

Em seu filme, o sr. comenta o fato de que todas as noites a TV mostra as cenas da destruição pelas mudanças climáticas. Primeiro, a televisão trouxe uma visão global do mundo que antes não estava disponível. Penso no pequeno orfanato que eu ajudo em Brazzaville (no Congo). Hoje, a televisão traz imagens desses paraísos em que vivemos por toda parte. Quando você está em Brazzaville e tem 15, 20 anos, você vê televisão e tem internet, sabe como vivemos, sabe qual é o salário médio na França e vive em países onde não há democracia, onde não há educação, não há serviços de saúde, onde há corrupção.

As pessoas só querem uma coisa: ir para este país incrível, este paraíso de sonho em que vivemos. É por isso que a grande crise migratória ainda não começou. Acho que, um dia, ficaremos sobrecarregados. Ainda há milhares de pessoas que todos os anos atravessam o Mediterrâneo e se afogam.

Por que acha que os comportamentos da população não se alteram? Existe um fenômeno como uma espécie de "não acreditamos no que sabemos", uma espécie de negação coletiva. A gente fala: "Ok, está pegando fogo, mas são os chineses, não sou eu, eu tenho meus probleminhas do dia a dia, os estudos dos meus filhos para pagar, tenho que pagar minha casa, onde vou passar férias...".

Sabe, é normal, é humano, não culpo ninguém por isso, mas, infelizmente, estamos completamente desconectados. Quando tinha 20 anos, eu queria salvar rinocerontes e elefantes. Hoje, vou salvar meus netos. Não é a mesma coisa. Você percebe o enorme precipício que tenho que atravessar todos os dias para entender isso?

Antes o fim do mundo era algo de que falávamos na Bíblia, mas hoje está no relatório do IPCC [Painel Intergovernamental para Mudança do Clima]. O secretário-geral das Nações Unidas, [António] Guterres, é extraordinário, é atualmente o único político que realmente diz coisas. Ele falou em suicídio coletivo, outro dia disse: "A humanidade abriu as portas para o inferno climático". Inferno climático são palavras muito fortes, e agradeço muito a ele ter tido a coragem de dizer isso.

Dez anos atrás, o sr. defendia as energias alternativas. Ficou desiludido com essa possibilidade? A produção de carvão aumentou quatro vezes mais rápido do que a produção de turbinas eólicas ou painéis solares. Um habitante de Bangladesh emite 0,3 toneladas de carbono por ano. Um francês emite 12.

Talvez as pessoas digam para si mesmas: "O homem sempre encontrou a solução, necessariamente vamos conseguir sair dessa. Sempre houve guerras, sempre houve pragas, houve epidemias e superamos isso. E aí vamos superar isso também". Talvez. De qualquer forma, acho que vou tentar até o fim. Vou tentar até o fim.

O sr. disse que por 80% de sua vida não se preocupou com as mudanças climáticas. Mas agora, o que faz? Como o sr. descarboniza sua vida? Em primeiro lugar, quando vi o filme de Al Gore ["Uma Verdade Inconveniente", 2006], entendi muitas coisas. Fiz o livro "A Terra Vista do Céu", que vendeu 4 milhões de exemplares, e pensei: "Bem, vou tentar mudar tudo". Parei com os combustíveis fósseis, mas para mim é muito fácil, eu tenho os meios para isso.

Mas é verdade que me tornei vegetariano na conferência do Rio em 2012, depois de assistir a um filme chamado "Alma" [2010, de Patrick Rouxel], sobre agricultura industrial. É engraçado, porque me tornei vegetariano, meu assistente se tornou vegetariano na mesma época e não contamos um para o outro. Foi só dois anos depois que descobrimos.

Eu tenho 77 anos, aproveitei tanto a vida, peguei avião, comi carne, tenho um carro elétrico, mas eu posso pagar, então é normal que eu seja o primeiro a fazer isso hoje. Aqui, acabei de fazer um filme sobre a biodiversidade na França e o impacto dos pesticidas. Como alimentos orgânicos o tempo todo, me tornei um pouco radical nisso, porque na França perdemos 70% dos insetos voadores. Setenta porcento.

Quando as pessoas te mostram coisas óbvias, você não pode esconder, não pode dizer "não, não sou eu". Acho que deixar de consumir carne industrial é o mínimo que podemos fazer. No Brasil, há um grande rebanho, mas há também carne que não é industrial, então no Brasil podemos comer essa carne não industrial.

Temos mais gado do que habitantes no Brasil... Vocês também têm muita soja. Reclamamos do Brasil por causa do desmatamento para a soja, mas quem compra a soja? Nós compramos. É tudo um pouco hipócrita, é um pouco de peso na consciência, mas somos todos responsáveis por isso.

Quais são seus projetos fotográficos? Estou preparando um filme sobre migrantes que é um grande filme à procura de mecenas, porque nenhuma televisão, nenhum grande estúdio de cinema quer comprar um filme sobre migrantes. Nós nos instalamos em uma cidade francesa, Lons-le-Saunier [416 km a sudeste de Paris] e filmamos diariamente, um pouco como um reality show.

Também tenho um projeto para renaturalização: comprei 30 hectares e estou estudando como os animais retornam às terras que você deixa selvagens. E estou trabalhando em um projeto muito grande sobre os franceses. Já fotografei 15 mil franceses e vou fotografar quase 40 mil. Estou colocando rostos nos números do censo, nas estatísticas.

É um trabalho gigantesco. O que faço com os franceses é um pouco como "A Terra Vista do Céu", em que trabalhei dez anos. As pessoas diziam: "Você nunca vai conseguir, não vai fazer o mundo inteiro". Mas eu sabia que tinha que ir até o fim, e com os franceses é um pouco a mesma coisa. Temos que fazer muito, muito, para ter um tipo de verdade.

No filme "A Vida Secreta de Walter Mitty" (2013), o personagem de Sean Penn é um fotógrafo que espera longamente para registrar um tigre raro do Himalaia. Mas quando ele aparece, não dispara a câmera, diz que aquela foto não poderia ser feita... Isso, para mim, é fantasia. Eu não acredito nisso. Se você é fotógrafo, se tem uma foto na sua frente, você fotografa. Prefiro não ver as coisas a vê-las sem uma câmera.

É por isso que nossos celulares são ótimos, porque com eles sempre dá para fotografar. Quando estamos na Academia de Belas-Artes, com Sebastião Salgado, por exemplo, estamos todos com nossos iPhones ao nosso lado e tiramos fotos de nós mesmos... Quando você é fotógrafo de verdade, vê através de um visor tudo o que está no entorno.

Sobre as fotos que gostaria de ter feito, em primeiro lugar, as mais importantes são as que eu não fiz. Quando estudava leões, sonhava ver uma caçada. Um dia, o grupo de leões pulou em cima de um búfalo, eram fotos incríveis, e eu disparava, disparava, disparava... e estava sem filme, não tinha colocado filme na câmera.

Era a primeira caçada que via depois de quatro meses. Não dá para esquecer, eu fiquei péssimo por ter perdido essa foto. Eu a tenho na cabeça até hoje. Então, talvez esta seja a minha foto predileta: porque eu vi, mas não fiz.

Legado: Nossa Herança

O jornalista viajou entre Londres e Paris a convite da plataforma Aquarius.

Colaborou André Fontenelle, em Paris.

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