Lei sobre igualdade salarial de gênero não resolve problema e pode sair pela culatra, dizem especialistas

Medida foi anunciada pelo governo nesta quarta; economistas apontam dificuldade de comparar salários e funções

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São Paulo

O PL (projeto de lei) sobre igualdade salarial entre homens e mulheres que foi apresentado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nesta quarta (8) não resolverá o problema da disparidade de remuneração e ainda corre o risco de prejudicar as mulheres no mercado de trabalho.

A avaliação é de economistas ouvidos pela Folha, que dizem que o Brasil já possui legislação proibindo a discriminação salarial com base em gênero —a qual não é suficiente para impedir que empresas remunerem melhor homens do que mulheres numa mesma função.

Criar uma lei a mais sobre o assunto é inócuo, dizem os especialistas, que defendem a criação de políticas públicas para combater as causas do problema.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva em cerimônia de celebração do Dia da Mulher, no Palácio do Planalto rights - Evaristo Sa - 08.mar.23/AFP

O PL assinado por Lula diz que a igualdade salarial para o exercício da mesma função é obrigatória. Companhias que não cumprirem a regra terão de pagar multa equivalente a dez vezes o maior valor pago pelo empregador.

Para Cecilia Machado, professora da EPGE (Escola Brasileira de Economia e Finanças) da FGV e colunista da Folha, o projeto é redundante, dado que o arcabouço legal brasileiro, incluindo Constituição e CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), já proíbe a discriminação.

No entanto, a principal crítica que ela faz é sobre a eficácia. Segundo Machado, esse tipo de legislação já vem sendo discutido há quase 70 anos, com a experiência internacional mostrando que não funciona

"Um dos motivos é que é muito difícil medir discriminação. Não é porque duas pessoas numa mesma ocupação recebem salários diferentes que isso significa que é discriminação", afirma.

Ela argumenta que as remunerações podem variar por diferenças na formação do trabalhador, na experiência profissional, e na própria função executada —tendo atribuições e responsabilidades distintas, por exemplo.

"As pessoas acumulam inúmeras dimensões que não só a mesma ocupação. Elas acumulam trajetórias diferentes, habilidades diferentes... Mesmo dentro de uma mesma ocupação, elas podem performar de maneira diferente."

Um dos problemas que ela enxerga no projeto de lei apresentado é a possibilidade de que algo bem-intencionado acabe prejudicando as mulheres.

"Se a legislação for encarada ao pé da letra, que é o que nós sempre temos medo no Brasil, pode ser um tiro que sai pela culatra. As firmas, no caso de alguma insegurança jurídica sobre como isso vai ser avaliado, podem preferir não contratar [mulheres]", diz.

Esse foi um dos pontos rechaçados pela ministra do Planejamento, Simone Tebet. Após evento de divulgação das medidas, ela disse que a ação não vai reduzir a contratação de mulheres, classificando a crítica como misógina.

"Se algum empregador estiver discriminando mulheres, se for fator para que não contrate mulher, não vai faltar empresa séria, responsável, para contratar mulheres", afirmou Tebet.

Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV Ibre, pondera que a possibilidade de o tiro sair pela culatra não envolve apenas empresas que "querem discriminar".

A depender de como a lei será interpretada e aplicada pela Justiça do Trabalho, o risco percebido pelas companhias pode ser um fator desmotivador, ainda que a empresa faça tudo certo.

"Pessoas com a mesma função devem ganhar a mesma coisa. Isso está bem esclarecido, não precisava nem de uma lei nova. A lei nova está criando multas claras, mas isso pode, dependendo da forma como se aplica, mais atrapalhar do que ajudar", diz.

Na avaliação dele, o projeto de lei deixa algumas dúvidas que precisarão ser esclarecidas, principalmente sobre como mensurar o que é uma mesma função.

"Gerentes de uma mesma loja ou de um mesmo banco, mas que trabalham em agências com faturamentos diferentes, devem ganhar o mesmo valor?", questiona. "No fundo, o trabalho não é o mesmo, e a lei precisa especificar esses detalhes", acrescenta.

Machado destaca que a disparidade salarial entre mulheres e homens está ligada a questões específicas de gênero, como a maternidade. Por isso, políticas que busquem equidade deveriam olhar para as causas, não apenas para a consequência.

É o que também pensa Deborah Bizarria, coordenadora de Políticas Públicas do Livres e colunista da Folha.

Para ela, o governo tem boas intenções, mas parte de uma mentalidade "fabril", onde é mais simples de verificar funções iguais e, portanto, punir quem não paga salários iguais.

Na economia moderna, diz, o mercado de trabalho impõe mais dificuldades para verificar desigualdades. As funções não são mais delimitadas como numa fábrica.

O ideal, argumenta Bizarria, é focar na causa da disparidade salarial. "Temos um problema muito sério que é o peso da maternidade sobre as mulheres. São elas que arcam com o custo da licença e da dificuldade de retornar ao mercado de trabalho", diz.

Segundo ela, existem políticas públicas que ajudam a contornar isso, como a licença parental. Resolver a fila das creches é outro ponto.

"São problemas que estão na causa das desigualdades de gênero e que não se resolvem com multa", diz.

Transparência nos salários pode ser mais eficiente

O PL apresentado nesta quarta ainda será analisado pelo Congresso, mas também determina que empresas com 20 ou mais empregados publiquem relatórios de transparência salarial, permitindo a comparação objetiva entre remunerações recebidas por mulheres e homens.

Segundo o texto, ato do ministro do Trabalho vai regulamentar o tema.

Para Machado, da FGV, medidas como essa são positivas e mais eficazes que a multa. "Primeiro porque elas são conhecimento para os trabalhadores, e porque essa verificação do que é o certo e errado não é o juiz que faz, é a sociedade", afirma.

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