Descrição de chapéu
The New York Times

Foto de mulher no Sudão se torna símbolo de protestos contra ditador

Imagem batizada de 'Estátua da Liberdade Sudanesa' viralizou nas redes sociais

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Vanessa Friedman
The New York Times

​De quando em quando surge uma imagem que enquadra de forma tão visceral a história humana de um momento de convulsão social ou política que ela vira um símbolo.

Foi o que aconteceu nesta semana com uma foto feita com smartphone durante uma manifestação no Sudão contra o regime repressor do ditador Omar al Bashir, quando os protestos que vêm ocorrendo de modo intermitente desde dezembro atingiram nova intensidade.

Foto que viralizou mostra sudanesa em protesto contra o ditador Omar Al-Bashir
Foto que viralizou mostra sudanesa em protesto contra o ditador Omar Al-Bashir - Lana H. Haroun/Reuters

A foto mostra uma mulher usando uma “thoub” (túnica usada tradicionalmente em alguns países árabes e africanos) branca e brincos dourados de disco, em pé sobre o teto de um carro. Ela está de perfil, fazendo um discurso, com um braço erguido para o céu, com o dedo apontado para o alto, e o outro em sua cintura, cercada por um mar de cabeças e braços que agitam telefones para registrar o momento.

Postada no Twitter na terça-feira (9) por Lana H. Haroun, na manhã de quarta (10) a imagem já recebera 50 mil curtidas e ganhara vida própria.

A mulher na foto foi identificada como Alaa Salah, estudante de 22 anos, mas algumas pessoas a apelidaram de a Estátua da Liberdade Sudanesa, outras simplesmente de “a mulher na thoub branca”. De uma maneira ou outra, sua imagem já repercutiu muito além de seu local de origem.

“Acho que vai ser a imagem da revolução”, comentou a americana de origem sudanesa Hind Makki, educadora em antirracismo em Chicago que postou a foto em todas suas plataformas.

Ela não é a única a pensar assim.

Parte da força da foto, disse Makki, se deve a seu simbolismo inerente, boa parte do qual contido na mensagem visual da roupa e dos enfeites de Salah.

Seus brincos, que refletem a luz, são, segundo Makki, enfeites tradicionais de casamento que simbolizariam a feminilidade. A escolha de uma thoub branca, uma peça de vestuário que já deixou de ser popular entre as sudanesas jovens (que a associam à geração mais velha), reflete um vínculo com as mães e avós “que se vestiram assim quando marcharam nas ruas protestando contra ditaduras militares anteriores”.

Makki disse que a thoub branca também é uma vestimenta democrática, usada tanto por secretárias quanto por advogadas. E o branco é a cor adotada pelas manifestantes estudantis desde março, quando muitas que participaram de um protesto sentado na Universidade Ahfad para Mulheres usaram thoubs dessa cor, inspirando outras a demonstrarem seu apoio usando roupas semelhantes (e produzindo uma hashtag).

Desde então essas mulheres de branco vêm sendo chamadas de Kandakas, referência às rainhas núbias da antiguidade, vinculando o poder das rainhas ao poder das mulheres que agora estão ajudando a liderar os protestos.

Como Makki apontou, embora essas referências deem ao branco sua história própria no Sudão, ele também é visto geralmente como a cor dos novos começos, a cor das sufragistas americanas e britânicas e a cor adotada mais recentemente pelas mulheres no Congresso americano, que vestiram branco durante o discurso do Estado da União neste ano para manifestar sua solidariedade e seu momento de transformação.

“A resposta está sendo fenomenal”, disse Makki, falando da reação a seus posts. “É até um pouco exaustivo.”

A reação à foto feita por Haroun a situa na mesma categoria de uma série de imagens que viraram sinônimos dos momentos históricos que representam. Entre elas, a foto da “mulher de vestido de verão” que enfrentou a tropa de choque em Baton Rouge, Louisiana, durante os protestos de 2016 contra a morte de Alton Starling, fuzilado por policiais; a “mulher de vestido vermelho” que olhou para o outro lado quando a polícia de Istambul jogava bombas de gás lacrimogêneo contra manifestantes em 2013, durante um protesto na praça Taksim; e o rapaz de camisa, mas sem casaco, que enfrentou os tanques que invadiram a praça Tienanmen, em Pequim, em 1989.

Em cada um desses casos, as imagens derivam seu poder em parte da natureza comum e corriqueira do indivíduo que não usa roupas defensivas ou uniforme militar que o despersonaliza, mas as roupas do dia a dia.

A roupa é uma das maneiras pelas quais os espectadores se sentem ligados às figuras nas imagens, que lhes parecem próximas e reconhecíveis porque se vestem de forma reconhecível.

Não é por acaso que essas fotos costumam ser descritas com alusões às vestimentas envolvidas. Não é apenas uma questão de como identificamos as imagens, mas de como nos identificamos com elas.

De fato, apesar de alguns comentários nas redes sociais terem expressado irritação com o fato de ter sido necessária uma foto para chamar a atenção do mundo para o Sudão, Arthur Asseraf, historiador na Universidade Cambridge, no Reino Unido, escreveu a respeito da reação à foto feita por Haroun:

“É incrivelmente frustrante. Mas também é muito útil. As imagens destas mulheres são um recurso estratégico enorme que esses movimentos podem usar para chamar nossa atenção. Portanto, saiam e se vistam desse jeito! Usem seus celulares! Tomem posse dos meios de representação!”

Como escreveu Susan Sontag em seu ensaio “Sobre a Fotografia”, o efeito é o de “democratizar todas as experiências, traduzindo-as em imagens”.

Há uma linha direta que liga uma imagem gravada na nossa memória à imagem seguinte, um senso de sororidade e humanidade compartilhada, apesar de as fotos terem sido feitas em momentos diferentes do tempo e em diferentes lados do oceano.

Tradução de Clara Allain

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