Corrente que confunde até argentinos, peronistas são maioria nas chapas presidenciais

Dos seis candidatos a presidente e vice das três coligações mais competitivas, apenas Macri não segue o conceito

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Buenos Aires

Encerrado o período de inscrição das chapas presidenciais às 0h deste domingo (23), as três mais competitivas possuem, entre os seis candidatos a presidente e a vice, cinco peronistas. Apenas o atual mandatário, Mauricio Macri, que busca a reeleição, não segue essa corrente ideológica. Os outros cinco são peronistas, mas estão longe de pensarem da mesma forma. Eles se dividem entre as diversas ramificações desse complicado conceito, que confunde até mesmo os próprios argentinos.

O primeiro turno das eleições ocorre em 27 de outubro, quando se renovará, também, parte do Congresso.

As três fórmulas com mais intenções de voto são: Mauricio Macri e Miguel Ángel Pichetto, pela coalizão Juntos por el Cambio (governista); Alberto Fernández e Cristina Kirchner, pela Frente de Todos; e Roberto Lavagna e Juan Manuel Urtubey, pela aliança Consenso Federal.

Apoiadores da ex-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, levantam bandeiras do país antes de uma manifestação em Merlo, em Buenos Aires - Agustin Marcarian - 25.mai.2019/Reuters

O que distingue os peronistas envolvidos nessa disputa? Pichetto e Fernández são típicos peronistas clássicos, que se adaptam ao governante de turno (desde que este seja peronista). Ambos já se mantiveram leais ao peronismo neoliberal de Carlos Menem (1989-1999) e ao peronismo de esquerda dos Kirchner (2003-2015). Apenas Alberto rompeu, ironicamente, com a sua atual companheira de fórmula, Cristina, depois de ter sido seu chefe de gabinete ao final de seu primeiro ano de gestão.

Para o historiador italiano Loris Zanatta, professor de história da América Latina na Universidade de Bolonha e especialista em Argentina, "se todas as fórmulas presidenciais contêm peronistas, pode-se passar a ideia de que o peronismo ganhou. Mas também cabe outra interpretação, a de que a definição clara do que é o peronismo está se apagando."

Sempre houve vários peronistas nas disputas presidenciais. Em 2015, havia três presidenciáveis peronistas (Daniel Scioli, Sergio Massa e Rodríguez Saá), na de 2003, uma das mais polêmicas por conta da desistência do primeiro colocado, outros três (Carlos Menem, Néstor Kirchner e Rodriguez Sáa). Qual a diferença nos dias de hoje?

Para Zanatta, é a falta de fricção e de identidade clara. "Chegar dividido na eleição não é novidade para o peronismo. Porém, antes, as diferenças eram muito mais claras. Néstor era uma opção à esquerda de Menem, que era neoliberal, e havia disputas ferrenhas entre eles, que por sua vez se enfrentavam aos peronistas federais, como Rodriguez Saá", explica o historiador. Além disso, havia partidos de oposição fortes e competitivos, como a hoje apagada União Cívica Radical, que apenas se limita a ajudar a compor a base da coalizão de Macri.

Para Zanatta, isso está mudando porque o peronismo está perdendo a característica de ser "uma corrente ideológica que se parecia mais a uma igreja, onde fiéis radicais brigam entre si. Hoje deixou de haver essa paixão, está sendo substituída pelo pragmatismo. Afinal, o peronismo se transformou, diante da dissolução de outros partidos depois da crise político-econômica de 2001, na única força nacional presente em todas as províncias. Não há um partido de oposição ao peronismo com esse alcance", conclui.

Mas quando surgiram as diferenças entre os distintos tipos de peronismo? Historiadores não chegam a um consenso específico sobre isso e ainda é um assunto aberto a debates calorosos.

Porém, em linhas gerais, pode-se dizer que nasceu com o casal Juan Domingo Perón (1895-1974) e Eva Perón (1919-1952).

Perón teria idealizado um sistema político em que as prioridades seriam a soberania nacional, a justiça social e a independência econômica. Em suas gestões, o general desenvolveu um estilo paternalista, típico dos caudilhos, mas sempre com mão de ferro em suas decisões. Governou a Argentina em três períodos, de 1946 a 1952, de 1952 a 1955 (quando foi derrubado por um golpe militar) e de 1973 a 1974, ano em que morreu. Durante seu longo exílio na Europa, entre o segundo e o terceiro mandato, se aproximou ideologicamente de Mussolini (1883-1945), a quem passou a admirar.

Seu perfil autoritário foi ficando mais marcado. Por isso, causou grande desilusão, ao voltar, na guerrilha marxista montoneros, que havia passado anos esperando a volta de Perón porque acreditava que ele construiria uma Argentina socialista. Porém, Perón estava muito longe dessas ideias, e rompeu com os montoneros, preferindo aproximar-se de um ramo do peronismo mais à direita, ligado ao sindicalismo.

Outra raiz do peronismo, que se ramificou de maneira diferente, foi a cultivada por sua mulher, Eva Perón (1919-1952). Em sua curta vida, interrompida aos 33 anos por um câncer, Evita foi uma militante engajada, conhecida por seus discursos radicais e incendiários. Tanto que os montoneros, ao desiludir-se com Perón, passaram a cantar: "Se estivesse viva, Evita seria montonera".  

Evita criou várias instituições de caridade para mulheres, crianças e população de rua. Seu trabalho social é até hoje exemplo para muitas organizações. Defendeu as mulheres e conseguiu que se fizesse promulgar o voto feminino na Argentina, a chamada Lei Evita, em 1947.

Porém, Eva Perón tampouco economizava a voz ao gritar contra os ricos e a oligarquia em seus discursos, e pregava certo ódio classista, algo que impregnou a esquerda peronista.

Do peronismo inspirado em Evita, surgiram os ramos do peronismo de esquerda, como o kirchnerismo e o peronismo ligado ao trabalho dos chamados "curas villeros", ou padres que atuam nas favelas —ambiente do qual saiu o próprio papa Francisco.

Obviamente, essas divisões não são estanques, e Perón e Eva na maior parte das vezes concordavam entre si, mas se diferenciavam eventualmente, em geral seguindo essas tendências.

Ao longo do tempo, foram surgindo outros peronismos. Para Zanatta, por exemplo, o peronismo de Pichetto, fruto do peronismo de Perón é um "peronismo parlamentar, oposto ao peronismo de rua. Ou seja, representa uma espécie de vingança do peronismo de Perón contra o peronismo de Evita."

Desde o começo, também houve uma distinção entre peronismo urbano, ligado à guerrilha nos anos 1970, ao kirchnerismo nos dias de hoje, e o peronismo mais tradicional que existe nas Províncias. Esse peronismo federal se aliou a Macri em 2015, com vários governadores que lhe deram apoio, em discordância com o kirchnerismo. Hoje, estão representados por Juan Manuel Urtubey, atual governador de Salta, que apesar de se definir como de centro-esquerda (está a favor da legalização do aborto), é muito mais conservador que o urbano e, antes de mais nada, busca uma maior autonomia das províncias com relação a Buenos Aires, principalmente em questões relacionadas ao orçamento nacional. Outros líderes do peronismo federal, conservadores também na moral e nos costumes, são a família Rodriguez Saá, de San Luís, e Juan Schiaretti, governador da Província de Córdoba.

Mas quem criou um grande cisma no peronismo foi o ultra-popular Carlos Menem (1989-1999), que, quando eleito, inaugurou uma ramificação do peronismo nada convencional. Apesar de reforçar o patriotismo à sua maneira, pediu uma grande conciliação nacional, trazendo de volta os restos do prócer Juan Manuel de Rosas e oferecendo indultos a repressores e guerrilheiros presos —por outro promoveu privatizações em larga escala. Foi um peronista neo-liberal, que ganhou setores do empresariado, mas gerou grande inquietação no peronismo dito de esquerda.

Indagado sobre o que é o peronismo hoje, o analista Rosendo Fraga crê que não se trata de uma discussão ideológica. "Se o poder está à direita ou à esquerda não interessa, o peronismo é uma cultura, que ocupa todos os espaços que pode".

Já para o cientista político Marcos Novaro, é certo que há uma flexibilização grande sobre seus conceitos gerais, mas que está se fortalecendo "a política territorial, por conta da dissolução dos outros partidos, isso faz com que o aparato peronista, que sempre foi mais forte no interior, predomine. Este nunca perdeu força, e mais, está ganhando mais força agora."

Para Novaro, Pichetto foi chamado para amenizar o que causa resistência em Macri, que é o vínculo que as pessoas fazem dele com a ideia de ajustes econômicos. "Pichetto, como peronista, estaria ali para defender que estes não atinjam tanto a população mais humilde", diz. Por outro lado, Cristina teria chamado Alberto para "amenizar sua imagem, que parece radical para muitos, para minimizar o medo que ela causa em não peronistas e mesmo em peronistas moderados."

Tanto que, perguntado na semana passada sobre sua ideologia, Alberto Fernández afirmou ser um "peronista progressista liberal". E assim, talvez, esteja inaugurando uma nova ramificação desse amplo conceito que é o peronismo.

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