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Personagens de nossa história que não cabem em uma nota

Ideia de colocar imagem de pessoas importantes ou historicamente famosas no dinheiro é antiga

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Escrevo de Nova York, um dos epicentros mundiais da pandemia da Covid-19. Hoje em dia, o número de mortes diárias neste estado é de cerca de 50 pessoas, mas a situação é melhor do que há um mês, quando morriam mil pessoas por dia.

No marco de uma crise de saúde e econômica mundial, e visto de longe, o debate argentino sobre quem deve aparecer nas notas de peso (figuras célebres ou animaizinhos) parece um pouco surrealista, ou até superficial, mas não se engane. É um debate real e importante, e o que está em discussão vai além da Argentina, e é um tema central da discussão latino-americana.

Recuperar ideias históricas por meio de seus protagonistas não é algo bom ou ruim em si; o problema é tirar os personagens do contexto. No Brasil, o populista e pós-fascista Jair Bolsonaro tenta reescrever a história de seu país pela negação dos crimes da ditadura militar e de seus assassinos.

Na Venezuela, o abuso da história de Bolívar é uma prática infame e habitual, começando pela mudança no nome do país instaurada por Hugo Chávez, e seria possível lotar bibliotecas com livros escritos sobre o uso e abuso do nome de Bolívar, naquele país. “Bolívar soberano” é o nome do dinheiro atual, em notas de alta denominação e baixo valor. O novo bolívar substituiu em 2018 o “bolívar forte”, que em 2008 já havia substituído o bolívar tradicional.

E embora agora tenha surgido a notícia de que o presidente argentino Alberto Fernández aparentemente decidiu conter os prejuízos e optou por não colocar a imagem do peronista e protofascista Ramón Carrillo na cédula de cinco mil pesos em companhia da médica argentina Cecilia Grierson, a ideia abriu novamente uma discussão interessante e importante sobre como queremos representar e resgatar o nosso passado, ou nossos exemplos (e modelos) do passado.

Não é uma discussão sem consequências e certamente é uma polêmica que corre o risco de retornar à ideia binária de dois países contrapostos.

O primeiro seria a Argentina peronista, a Venezuela populista ou até o Brasil bolsonarista. Um país com uma história que muitos abraçam e muitos rejeitam. O segundo seria o país da pós-política e da pós-história, que deseja esquecer o passado e despolitizar o dinheiro. Mas na verdade tudo é parte de uma discussão política sobre quem somos e como queremos nos pensar.

Retomando o caso argentino, não é que seja importante discutir se Juan Domingo Perón ou o encarregado de suas políticas de saúde, Ramón Carrillo, tiveram em algum momento simpatia pelo fascismo. Sem dúvida as tiveram.

Mas é necessário recordar que, em sua reformulação daquilo que o fascismo havia representado, mas em clave democrática, Perón deixou o fascismo muito para trás e criou a primeira democracia populista da América Latina e do mundo (em breve se seguiriam outras no Brasil, Bolívia e Venezuela). O fascismo ficou muito para trás e o populismo foi, e é, uma maneira de pensar a democracia que combina as tradições democráticas e autoritárias.

Em termos de saúde, a política populista clássica não tem qualquer coisa a ver com o fascismo. Por acaso, personagens estelares do populismo atual, como Donald Trump e Jair Bolsonaro, deixam de lado a tradição populista e abraçam as políticas fascistas quanto à enfermidade, que com sua falta de planejamento e prevenção e com suas fantasias e xenofobias, nada têm a ver com a tradição populista representada por Perón, ou Getúlio Vargas no Brasil, ou pelos populismos clássicos da Bolívia e Venezuela.

Tampouco têm a ver com essa política de prevenção os delírios e negações sobre a enfermidade que acontecem em países de marco ditatorial e já não populista, como a Venezuela e a Nicarágua. Nesses países, como também em ditaduras como Belarus, Turcomenistão e Coreia do Norte, há uma estratégia de controle e propaganda pelos governos que se inscreve em um mundo de desinformação totalitária.

Esse tipo de estratégia define um autoritarismo que, na prática, fomenta a enfermidade e a morte. Nossa Argentina está longe desses casos e delírios, e, como escrevemos com a virologista Laura Palermo, a Argentina contrasta bem com os Estados Unidos, Brasil, Venezuela e Nicarágua e é um exemplo de prevenção da enfermidade.

Em termos concretos, fica evidente que a intenção não era refletir a relação entre fascismo e populismo, mas sim propor continuidades com o passado em termos de políticas médicas e de prevenção. Discutir o passado com relação ao nosso presente é sempre importante, mas as imagens usadas nas notas talvez não sejam a melhor plataforma sobre a qual travar esse debate.

Lamentavelmente, o debate na forma em que está sendo proposto na Argentina e na forma pela qual é proposto muitas vezes na América Latina, nos divide em dois partidos e elimina a complexidade de nossa história, que não é somente a de San Martín, Eva Perón, ou as baleias do Mar Austral.

A ideia de colocar a imagem de pessoas importantes ou historicamente famosas no dinheiro é muito antiga. É uma ideia que não requer pensamento, e repete a ideia de cantar o hino a cada manhã sem pensar em coisa alguma.

Ou melhor dizendo, a história que isso apresenta é a de um Estado (e alguns políticos) que usam a história para se refletir em um passado dourado. Para se justificar. Inaugurada por historiadores do poder no século 19, essa ideia velha de historiografia apresenta uma história mítica de heróis e vilões que substitui a história mais concreta, aquela que todos experimentamos.

Não existe em nossos países latino-americanos uma contenda entre a civilização e a barbárie, e nunca existiu. Os animaizinhos do dinheiro argentino atual, que parecem neutros (quem pode ser contra eles?), na verdade não o são, pois representam uma vontade de esquecer que é tão problemática quanto a de celebrar o passado em lugar de pensá-lo criticamente.

Somos pessoas e não apenas topografia e fauna. Não é necessário desumanizar nossos símbolos. O cachorro de Ulisses, Rocinante ou o cavalo de San Martín, e as facções de Bolívar, são parte de uma história que envolve pessoas. Não é que eu tenha uma solução para esse debate (minha proposta para o dinheiro argentino seria usar as imagens de Mafalda, Libertad, da tartaruga Manuelita, de Funes o memorioso, do velho Vizcacha do livro “Martin Fierro” e de outras menções alegóricas ou metafóricas a temas de nossa literatura, nossa música, nosso esporte). Ícones de que todos compartilhamos e nos ajudam a nos pensarmos através de nossas pluralidades, concordâncias e diferenças.

Artigo publicado originalmente pelo jornal argentino Clarín.

Federico Finchelstein é historiador. Professor da New School for Social Research, em Nueva York.

www.latinoamerica21.com, um projeto plural que difunde diferentes visões sobre a América Latina.

Tradução de Paulo Migliacci

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