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Ditadura de Maduro não tem divisões, é como 'O Médico e o Monstro', diz Guaidó

Embora tenha proposto diálogo, líder venezuelano desconfia de acenos da ditadura à oposição

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Buenos Aires

Recém-recuperado após contrair o coronavírus, Juan Guaidó, 37, passou a apostar suas fichas num "acordo de salvação nacional", com apoio da comunidade internacional, para tirar o ditador Nicolás Maduro do poder. O líder venezuelano diz que as condições do país hoje, mais graves devido à pandemia de Covid e à degradação da economia, são mais favoráveis à oposição, que conta com o apoio do governo do presidente dos EUA, Joe Biden, para tentar chegar a eleições livres.

Em entrevista à Folha, por videoconferência, ele se diz cético quanto a gestos da ditadura que pareçam sinais de abertura, porque eles são realizados pelas mesmas pessoas que apoiam o confisco de propriedades de meios de comunicação, como ocorreu no caso do jornal El Nacional.

Diante de imagem de Simón Bolívar, o opositor venezuelano Juan Guaidó participa de evento em auditório em Caracas - Divulgação

"Não há divisão no regime entre conservadores e moderados. São as mesmas pessoas, é como o dr. Jekyll e o sr. Hyde", afirma ele, em referência à história publicada em 1886 pelo escocês Robert Louis Stevenson, mais conhecida como “O Médico e o Monstro” no Brasil, na qual um médico se equilibra por meio de um soro entre um bom doutor e um ser inescrupuloso, violento e sádico.

Ainda assim, Guaidó esticou a mão recentemente ao regime chavista ao oferecer diálogo para pedir um cronograma de eleições em troca da retirada progressiva de sanções internacionais. A mudança de discurso ocorreu depois de parte da oposição integrar o órgão eleitoral dominado pela ditadura.

Em entrevista à Folha, Roberto Picón, integrante do novo CNE [Conselho Nacional Eleitoral] e opositor do regime, disse que fazer parte do órgão era uma forma de tentar ocupar os espaços possíveis deixados pela ditadura. O que o senhor acha disso? Respeito a posição de Roberto, mas discordo da estratégia política. Aceitar este CNE escolhido por uma Assembleia Nacional eleita de forma irregular é ajudar a legitimar a ditadura. Aconteceu em outros momentos da história. Na Alemanha nazista, no Chile de Pinochet, sempre houve um grupo que, com alguma desculpa, aceitava flexibilizar, ser condescendente com um governo autoritário. Isso não produz mudança. Ao contrário, ajuda a normalizar a ditadura. Não se pode ser mais ou menos a favor dos direitos humanos.

Essa manobra do regime, a de chamar opositores para o CNE, dá uma ideia de concessão, ainda mais quando se trata de um ex-preso político, como é o caso de Picón. Eu o respeito, mas é uma forma de manipulá-lo, de tutelá-lo. Nossa Constituição não diz que o CNE tem de ter cotas, dois de um grupo, três de outro, ou nada nesse sentido. Devem ser cinco reitores independentes, é o que diz a lei. Então que papo é esse de aceitar que a ditadura autorizou [a presença de] dois opositores? Não podemos engolir esse discurso, porque se trata de uma manobra propagandística.

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Mas o senhor, que sempre insistiu no mantra "fim da usurpação, eleições livres" e adotou a postura de alguém que não aceita dialogar, propôs recentemente a abertura de negociações. O que mudou? Um mantra não é um dogma. Estamos trabalhando com a Noruega como facilitadores desse acordo. Uma negociação hoje não seria igual às do passado, em que Maduro poderia mentir ou simplesmente levantar da mesa. E nós não entraremos sem as garantias necessárias. E essas garantias não podem ser gestos, acenos, têm de ser compromissos vigiados pela comunidade internacional que garantam ajuda humanitária, eleições e a interrupção dos abusos dos direitos humanos.

Há quem interprete a liberação dos executivos da refinaria americana Citgo e a formação do novo CNE como gestos positivos do regime. Mas já houve negociações antes que falharam. O que o leva a ser otimista com um possível acordo agora? Estamos num novo momento quanto à gravidade da situação do país, que se deteriorou muito com a pandemia e o agravamento dos problemas que já havia. Mas os chamados gestos ou acenos vêm de muito tempo. A cada tanto liberam presos políticos, realizam eleições tuteladas, dão a impressão de que caminham para uma abertura. Mas na verdade não o fazem. Não acreditamos mais nesses tais gestos. Essas medidas visam abrandar as sanções, mas não há ânimo da comunidade internacional em abrandar sanções se não for mediante garantias mais concretas.

O mesmo regime que faz esses tais gestos é o que manda confiscar o prédio do jornal El Nacional. Isso mostra uma divisão interna no chavismo? Não há divisão interna. Há, sim, grupos que disputam áreas de interesse: os da mineração, os das Forças Armadas, os da área petrolífera. Mas não há correntes, como uma moderada, outra mais radical, outra conservadora. São as mesmas pessoas. É como se fosse o dr. Jekyll e o sr. Hyde, sabe? Os mesmos que promovem os gestos de liberar presos ou acenar para a oposição são os que aceitam confiscar o [jornal El] Nacional. Não há correntes nem divisões ali dentro no que diz respeito ao funcionamento do regime.

O calendário eleitoral estipula eleições regionais neste ano. Em 2017, parte da oposição participou, incluindo pessoas que apoiam o senhor. Qual será a posição agora? Não podemos perder o foco. A ditadura quer falar dessa eleição agora para nos colocar num dilema. Vamos decidir se participamos ou não mais adiante. Não vamos colocar isso como prioridade da nossa agenda agora só porque Maduro quer. O que queremos é avançar num acordo de salvação nacional, com forte participação internacional.

Como o senhor recebeu o apoio do governo Biden? Quais são os próximos passos? Maduro tentou dizer a seu entorno que uma vitória de Biden o favoreceria, pois os EUA deixariam de manter sanções da era Trump. Mas sabíamos que não ocorreria. Esperamos que a pressão dos EUA, da comunidade internacional e da OEA seja ainda mais forte. Estamos num outro patamar de gravidade da situação. E a debilidade de Maduro é enorme também, politicamente, economicamente. Não podemos desistir de exercer pressão.

Como interpreta a morte de Jesús Santrich [ex-guerrilheiro das Farc] em território venezuelano? Demonstra o que estamos dizendo há anos, que grupos criminosos e terroristas estrangeiros estão abrigados por Maduro em nosso território. Mostra, também, que a ditadura está perdendo o controle da soberania do nosso país. Porque já não controla nem as ações desses grupos na região fronteiriça, e por isso teve de enviar tropas. O problema cresceu e saiu de seu controle. Os enfrentamentos em Apure são gravíssimos por mostrar isso. E por colocar a vida de tantos civis venezuelanos em risco.

O senhor é o líder da oposição desde 2019. Desde então, houve desgastes. Faz alguma autocrítica? Me fazem muito essa pergunta, e ela me faz pensar. Claro que cometi erros. Mas é preciso lembrar que estamos numa ditadura. E nós tentamos de tudo. Lutamos por uma maioria na Assembleia Nacional, conseguimos, levamos gente às ruas, disputamos eleições injustas, depois decidimos não disputar, buscamos ajuda internacional, tentamos negociar. O que nunca mudamos foi a convicção de que é preciso continuar a fazer pressão, e a convicção de que não podemos relativizar direitos, normalizar a ditadura.

Então, quando ouço esse tipo de pergunta, penso e faço, sim, uma autocrítica, mas me pergunto se os que focaram nossos erros não estão de algum modo sendo condescendentes com a ditadura. Maduro continua aí não devido aos meus erros, mas porque se trata de um regime ditatorial com poder militar. Então que entendam que não é fácil e que nunca deixamos de pressionar.


Raio-X

Juan Guaidó, 37
Eleito deputado pelo estado de Vargas, foi presidente da Assembleia Nacional da Venezuela. Em janeiro de 2019, proclamou-se presidente do país.

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