Millennials da China querem ficar deitados, sem trabalhar, e Pequim não está contente

Movimento de jovens chineses defende 'fazer nada' como forma de resistência silenciosa à narrativa oficial do trabalho duro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Elsie Chen
The New York Times

Cinco anos atrás, Luo Huazhong descobriu que gostava de não fazer nada. Ele deixou o emprego numa fábrica na China, percorreu mais de 2.000 quilômetros de bicicleta da província de Sichuan até o Tibete e decidiu que podia sobreviver com "bicos" e cerca de R$ 300 por mês de sua poupança.

Ele chamou seu novo estilo de vida de "ficar deitado". "Eu estou relaxando", escreveu Luo, 31, em um blog em abril, descrevendo seu modo de vida. "Não vejo nada de errado nisso."

Ele intitulou a postagem de "ficar deitado é justiça" e acrescentou uma foto dele deitado na cama em um quarto escuro, com as cortinas fechadas. Em pouco tempo o post era comemorado pela geração dos millennials da China como um manifesto anticonsumo. "Ficar deitado" viralizou e desde então se tornou uma declaração mais abrangente sobre a sociedade chinesa.

Luo Huazhong, que popularizou a ideia de um modo de vida mais relaxado, deitado no chão em Jiande, na China
Luo Huazhong, que popularizou a ideia de um modo de vida mais relaxado, deitado no chão em Jiande, na China - Qilai Shen - 18.jun.21/The New York Times

Uma geração atrás, o caminho do sucesso na China era trabalhar muito, casar-se e ter filhos. O autoritarismo do governo era considerado uma compensação justa, pois milhões de pessoas foram tiradas da pobreza. Mas com os empregados trabalhando muitas horas e o preço das moradias aumentando mais depressa que a renda, muitos jovens chineses temem se tornar a primeira geração a não ter uma vida melhor que a de seus pais.

Hoje eles contestam a antiga narrativa de prosperidade do país recusando-se a participar dela.

China, Terra do Meio

Receba toda sexta-feira um resumo das principais notícias da China no seu email

O post de Luo foi retirado por censores, que o consideraram uma afronta às ambições econômicas de Pequim. Menções a "ficar deitado" —"tangping", em mandarim— são fortemente restritas na internet chinesa. Também surgiu uma contranarrativa oficial, que instiga os jovens a trabalhar duro pelo futuro do país. "Depois de trabalhar tanto tempo, eu me sentia amortecido, como uma máquina", disse Luo em uma entrevista. "Por isso me demiti."

Ficar deitado significa esquecer o casamento, não ter filhos, ficar desempregado e desprezar necessidades materiais como uma casa ou um carro. É o oposto do que os líderes chineses pedem à população. Mas isso não incomodou Leon Ding.

Ding, 22, está "deitado" há quase três meses e vê o ato como "resistência silenciosa". Ele deixou a universidade no último ano em março porque não gostava da carreira em ciência da computação que seus pais haviam escolhido para ele.

Depois de abandonar a faculdade, Ding usou sua poupança para alugar um quarto em Shenzhen. Ele tentou encontrar um emprego num escritório, mas percebeu que a maioria dos cargos exigia que ele trabalhasse muitas horas. "Eu quero um emprego estável que me permita ter tempo para relaxar, mas onde posso encontrar isso?"

Ding acha que os jovens deveriam trabalhar duro no que gostam, mas não "996" —das 9h às 21h, seis dias por semana—, como esperam muitos patrões na China. Frustrado com a pesquisa de empregos, ele decidiu que "ficar deitado" era a melhor solução.

Embora muitos chineses millennials continuem aderindo à ética de trabalho tradicional do país, "ficar deitado" reflete um movimento nascente de contracultura e ao mesmo tempo uma reação ao ambiente de trabalho altamente competitivo.

Xiang Biao, professor de antropologia social na Universidade de Oxford que estuda a sociedade chinesa, chamou a cultura do "tangping" de ponto de inflexão para a China. "Os jovens sentem uma espécie de pressão que não podem explicar e sentem que as promessas não foram cumpridas. As pessoas percebem que o progresso material não é mais a única fonte importante de significado na vida."

O Partido Comunista, temendo qualquer forma de instabilidade social, atacou a ideia de "ficar deitado" como uma ameaça à estabilidade do país. Censores deletaram um grupo de "tangping" com mais de 9.000 membros do Douban, um popular fórum na internet. As autoridades também bloquearam postagens de outro fórum de "tangping" com mais de 200 mil membros.

Em maio, o órgão regulador da internet na China ordenou que as plataformas online "restrinjam firmemente" novas postagens sobre "tangping", segundo uma diretriz obtida pelo New York Times. Uma segunda diretriz exigia que plataformas de comércio eletrônico parem de vender roupas, capas de celular e outras mercadorias com a palavra "tangping".

A mídia estatal chamou o movimento de "vergonhoso", e um jornal advertiu contra "ficar deitado antes de ficar rico". Yu Minhong, um conhecido bilionário, pediu que os jovens não fiquem deitados, porque "com quem vamos contar para o futuro de nosso país?".

Luo decidiu escrever sobre "tangping" depois que viu pessoas discutindo acaloradamente os últimos resultados do censo na China, em abril, e os pedidos para que o país lide com a iminente crise demográfica tendo mais bebês. Ele descreveu seu post original sobre "ficar deitado" como "um monólogo interior de um homem que vive no fundo da sociedade".

"Essas pessoas que dizem que ficar deitado é vergonhoso não têm vergonha", disse Luo. "Eu tenho o direito de escolher um estilo de vida lento. Não fiz nada destrutivo para a sociedade. Temos de trabalhar 12 horas por dia em uma oficina quente, e isso é justiça?"

Luo nasceu na região rural de Jiande, no leste da província de Zhejiang. Em 2007, abandonou a escola vocacional e começou a trabalhar em fábricas. Em um emprego ele tinha de trabalhar 12 horas fabricando pneus. No final do dia, tinha bolhas nos pés.

Em 2014, encontrou um trabalho de inspetor de produtos em uma fábrica, mas não gostou. Ele o deixou depois de dois anos e começou a fazer bicos ocasionais para pagar as contas. (Em 2018 interpretou um cadáver em um filme chinês —deitado, é claro.)

Hoje ele vive com sua família e passa os dias lendo filosofia e notícias e se exercitando. Ele disse que é um estilo de vida ideal, que lhe permite viver com o mínimo e "pensar e se expressar livremente". Ele incentiva seus seguidores, que o chamam de "o mestre do ficar deitado", a fazer o mesmo.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.