Base aérea americana na Alemanha vira refúgio temporário para afegãos

Local poderia comportar 5.000 pessoas retiradas de Cabul, mas já abriga quase três vezes mais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Melissa Eddy
Base Aérea Ramstein (Alemanha) | The New York Times

O horário de trabalho estava chegando ao fim na base aérea dos EUA no sudoeste da Alemanha, e os alto-falantes do imenso espaço começaram a tocar o hino nacional americano. Mais tarde, os alto-falantes voltaram a funcionar, desta vez em árabe, chamando os muçulmanos para as orações do fim da tarde.

A gravação em árabe é apenas uma das mudanças espantosas que marcaram as últimas duas semanas na grande Base Aérea Ramstein, na Alemanha. Equipes das Forças Armadas dos EUA, do Departamento de Estado, do Departamento de Segurança Interna e de outros órgãos vêm trabalhando intensivamente para acolher, abrigar, selecionar e enviar milhares de pessoas –cidadãos americanos e afegãos—aos EUA.

Base Aérea Ramstein, na Alemanha, para onde milhares de afegãos foram levados após serem retirados de Cabul pelos EUA
Base Aérea Ramstein, na Alemanha, para onde milhares de afegãos foram levados após serem retirados de Cabul pelos EUA - Gordon Welters/The New York Times

Depois de Cabul cair nas mãos do Talibã, em 15 de agosto, os EUA iniciaram a retirada diária de milhares de pessoas da cidade em aviões. Muitas foram levadas a instalações militares americanas no Qatar ou no Kuait. Mas ao término daquela primeira semana, essas bases não podiam comportar mais recém-chegados. Ramstein, que ao longo de todos os 20 anos da guerra no Afeganistão funcionou como importante ponto de passagem de tropas e equipamentos, foi convocada para cumprir mais uma missão.

Quando os primeiros a chegar do Afeganistão desembarcaram na base, em 20 de agosto, o general Joshua Olsen, comandante da 86ª Ala de Transporte Aéreo, disse a jornalistas que Ramstein poderia comportar 5.000 evacuados. Agora, duas semanas mais tarde, a base abriga quase três vezes mais.

“Quando chegamos a Ramstein, senti que agora, finalmente, eu estava em segurança”, disse Hassan, um jovem afegão que trabalhou como intérprete das Forças Especiais americanas na província de Helmand e conseguiu embarcar num voo de retirada na semana passada. Ele se negou a informar o sobrenome por motivos de segurança, já que deixou a família em Cabul.

Depois de passar meses escondido e de várias tentativas infrutíferas de chegar ao aeroporto de Cabul para embarcar num dos voos, Hassan disse que dividir uma tenda numa base aérea americana com dezenas de outras pessoas, tendo pouco mais a fazer do que jogar futebol, vôlei ou esperar pela próxima refeição, não o incomoda em nada. “Simplesmente estou feliz por estar aqui”, afirmou.

Muitos dos militares e das autoridades envolvidas na missão de evacuação em Ramstein já passaram um tempo no Afeganistão, eles próprios, acreditando fazer parte de um esforço para ajudar o país a construir um futuro melhor e mais democrático. Para eles, ajudar os afegãos em Ramstein a se sentirem bem e a levá-los aos EUA no menor prazo possível é mais do que uma simples tarefa. É um objetivo pessoal.

“Todos nós conhecemos alguém que foi deixado para trás”, disse Elizabeth Horst, que passou um ano no Afeganistão em 2008-09 e foi enviada pela embaixada americana em Berlim para administrar o lado civil da operação com os evacuados em Ramstein. “O fato de fazer parte disso ajuda.”

O dia de trabalho dela começa com uma reunião interagências em que cerca de 30 pessoas se aglomeram em volta de uma mesa e trocam as informações mais recentes. São destacadas as vitórias –por exemplo, uma criança desacompanhada que foi reunida com seus pais— e os desafios, como o número de pessoas cujas bagagens ainda não foram encontradas.

O foco da missão de evacuação é levar os cidadãos americanos e suas famílias para casa e conduzir os afegãos para destinos seguros, ao mesmo tempo assegurando a segurança da base aérea e das fronteiras dos EUA. Para isso, todos os recém-chegados passam por uma triagem médica antes de encontrar funcionários de fronteira americanos, que fazem os passageiros passarem por exames biométricos.

“Ninguém embarca num avião sem ter sido aprovado”, disse Horst. Até quarta-feira (1º), cerca de 11.700 pessoas tinham sido conduzidas aos Estados Unidos ou a outro destino seguro. Até agora, disse ela, nenhum dos retirados teve seu ingresso nos EUA recusado.

Nem tudo vem transcorrendo sem obstáculos. Depois de funcionários da base e voluntários terem sido convocados para montar camas de acampamento nas tendas, muitos dos afegãos que chegaram disseram que preferiam dormir sobre cobertores no chão, como faziam no Afeganistão. Outros não sabiam usar os banheiros portáteis instalados em filas longas e que são limpos seis vezes por dia.

“O saneamento é uma batalha constante”, disse o tenente-coronel Simon Ritchie, do 86º Grupo Médico, responsável pela triagem inicial dos recém-chegados. Antes de passar pela triagem biométrica, todos têm a temperatura medida e são examinados para verificar sinais de doenças, ferimentos ou lesões.

Ritchie contou que já viu pessoas com ferimentos de bala e fraturas ou que precisam de medicamentos para diabetes ou hipertensão, além de muitos casos de diarreia e desidratação, especialmente em crianças. Às vezes ele nota uma criança que está tão estressada e aflita que ele a chama com um de seus pais e a envia para uma tenda escurecida e tranquila.

Muitas das famílias têm mais de uma dúzia de membros; outras cresceram desde o desembarque na base. A capitã Danielle Holland, ginecologista e obstetra na Força Aérea, contou já ter encaminhado três mulheres em trabalho de parto para um hospital do Exército, mas em três outros casos o trabalho de parto já estava tão adiantado que os bebês nasceram na tenda de emergências montada na própria base.

Além de atender às necessidades imediatas dos retirados, fornecendo-lhes duas refeições por dia e acesso ilimitado a água potável, a equipe trabalha para assegurar que eles entendam onde estão e para onde irão. Fisicamente cansados, muitos se preocupam com familiares que continuam no Afeganistão e que eles não vem conseguindo contatar —as tendas não têm tomadas que lhes permitam carregar seus celulares ou acessar comunicações. E estão estressados devido à incerteza em relação ao futuro, disse o capitão Mir M. Ali, imã que trabalha em Ramstein.

Além de fornecer tendas que podem ser usadas como mesquitas e organizar os chamados regulares às orações, Ali conversa com os afegãos. “Lembro a eles que a cada passo que dão, sua situação melhora, como diz o verso do Alcorão: ‘Com cada provação vem alívio’”, disse ele.

Elizabeth Horst, a funcionária consular, espera agora conseguir devolver às pessoas as bagagens que muitas foram obrigadas a deixar para trás ao longo do caminho –no Qatar, por exemplo. Muitas delas não querem prosseguir para uma vida nova nos Estados Unidos sem os poucos pertences que conseguiram tirar do Afeganistão enfiados em sacolas plásticas ou envoltos em cobertores. “As bagagens são importantes para as pessoas”, afirmou ela. “Contêm os últimos resquícios de suas casas.”

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.