Descrição de chapéu The New York Times

Troca de bebês no Canadá há 67 anos expõe passado de políticas anti-indígenas

Criado dentro da etnia Cree apesar das origens ucranianas, Richard Beauvais sofreu assimilação forçada nos anos 1960

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Norimitsu Onishi
The New York Times

Richard Beauvais começou a questionar sua própria identidade dois anos atrás, depois que uma de suas filhas se interessou por sua ascendência. Ela queria descobrir mais sobre as origens indígenas do pai –estava até cogitando fazer uma tatuagem— e o incentivou a fazer um exame de DNA em casa.

Beauvais, que tinha 65 anos à época, passara a vida se descrevendo como "metade francês, metade indígena", ou métis, como são chamados os descendentes da união de homens europeus com mulheres de origem indígena no Canadá, e crescera com seus avós numa cabana de madeira numa comunidade de outros como ele.

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Fotografias antigas de Richard Beauvais em sua casa, em Sechelt, no Canadá - Alana Paterson - 5.mai.23/The New York Times

Assim, quando o exame não indicou qualquer ascendência indígena ou francesa, mas uma mistura de raízes ucranianas, polonesas e de judeus ashkenazi, ele pensou que tivesse havido um erro e voltou à sua vida normal como pescador e comerciante na província de Colúmbia Britânica, no extremo oeste do país.

Mais ou menos na mesma época, na província de Manitoba, no centro do país, um jovem curioso da família estendida de Eddy Ambrose se submeteu ao mesmo teste. Seu resultado levou as noções que Ambrose tinha sobre si mesmo se despedaçarem em pedacinhos.

Ele, que fora criado ouvindo canções folclóricas ucranianas e assistindo à missa no idioma do país do Leste Europeu, não tinha qualquer ascendência ucraniana segundo o exame. Ambrose era métis.

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Eddy Ambrose em sua casa em Winnipeg, capital da província de Manitoba, no Canadá - Nasuna Stuart-Ulin - 6.mar.23/The New York Times

E, assim, dois anos atrás, depois de um primeiro contato por meio do site do teste de DNA, além de meses trocando emails e fazendo telefonemas angustiados e de suas famílias passando noites em claro, Beauvais e Ambrose chegaram à conclusão que foram trocados na maternidade.

O erro ocorreu em um hospital rural canadense. Lá, Beauvais e Ambrose, nascidos com horas de diferença um do outro, foram mandados para casa com os pais errados.

Por 65 anos, cada um levou a vida do outro. Beauvais afirma ter vivido uma infância complicada que se tornou ainda mais traumática em razão das políticas brutais do Canadá em relação aos povos indígenas. Ambrose diz ter tido uma criação feliz e despreocupada, mergulhada na cultura católica ucraniana de sua família e de sua comunidade –mas sem conexão com sua origem verdadeira.

As revelações obrigaram os dois homens a questionar quem realmente são. Ambos ficaram tentando juntar os pedaços de um passado que poderia ter sido seu e entender as implicações disso.

"É como se alguém tivesse entrado na sua casa e roubado alguma coisa de você", exemplificou Ambrose. "Faz eu me sentir como se tivessem roubado minha identidade. Meu passado inteiro desapareceu. A única coisa que tenho agora é a porta que estou abrindo para o meu futuro, que eu preciso encontrar."

Na primeira vez em que os dois homens interagiram, em uma conversa por telefone com grande potencial para ser incômoda, Beauvais quebrou o gelo com uma piada. Disse que os pais de Beauvais "olharam para os dois bebês, escolheram o bonitinho e deixaram o feinho". Mas quando a dupla começou a falar de coisas sérias, admitiram um para o outro que gostariam que a verdade não tivesse vindo à tona.

"Concordamos que se só nós dois tivéssemos descoberto a verdade e ninguém mais estivesse sabendo, teríamos simplesmente fechado o livro de novo e não teríamos contado a ninguém", diz Beauvais. "Teríamos deixado nossas vidas continuar como estavam."

Os dois meninos nasceram em um pequeno hospital municipal de Arborg, em Manitoba, cidade a 110 km ao norte da capital da província, Winnipeg. Suas vidas seguiram rumos diferentes desde o começo.

Dois casais haviam vindo de cidades próximas para que seus filhos nascessem no hospital. Camille Beauvais era franco-canadense, e sua esposa, Laurette, era métis, descendente de uma união entre uma indígena da nação Cree e outro franco-canadense.

Eles moravam em uma cidade chamada Fisher Branch, em uma casa pequena de construção frágil que, como a maioria das construções locais na década de 1950, não tinha água corrente ou banheiro interno. A informação é de três pessoas que conheciam o casal e ainda vivem em Fisher Branch.

Camille Beauvais trabalhava para a companhia nacional de trens, fazendo a manutenção das ferrovias. "Ele era um ‘gentleman’. Era educado e cumprimentava todo mundo com muita gentileza", afirma Cubby Barrett, 91. "Eu era amigo dele." Laurette havia vindo de um assentamento métis estabelecido havia muito tempo, St. Laurent, onde se falava tanto francês como o idioma cree. Gladys Humeniuk, 96, conta que ela "era muito reservada, falava pouco com as pessoas, porque não falava inglês".

Já James e Kathleen Ambrose eram filhos de imigrantes ucranianos. Eram agricultores prósperos e donos de uma mercearia e de uma agência dos correios em Rembrandt. Quando foram ao hospital para o nascimento do filho, já tinham três filhas. A mais velha, Evelyn Stocki, 75, diz que Eddy, "por ser o único homem, virou tudo no mundo" para os pais e tinha em particular uma ligação muito forte com James.

Eddy Ambrose descreve seu pai como seu mentor. "Eu queria ser como ele", diz. Em uma entrevista em Winnipeg, na residência modesta que divide com a esposa, ele contou que cresceu em um ambiente de amor e proteção junto aos pais e às três irmãs mais velhas. "Richard deveria ter estado em meu lugar, criado em uma família amorosa", afirma Ambrose, um tapeceiro aposentado. "Aquele deveria ter sido ele. Era ele quem devia ter recebido aquele amor."

Quando os dois homens conversaram pela primeira vez, Ambrose conta que ficou chocado ao saber da infância traumática de Beauvais. "Richard me disse que foi tão brutal que eu provavelmente não teria sobrevivido. Pensei que, em um certo nível, estava feliz por não ter passado por aquela experiência, mas era triste ouvi-lo falar sobre ela."

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Richard Beauvais posa com seus cavalos Rita e Red em sua propriedade em Sechelt, no Canadá - Alana Paterson - 5.mai.23/The New York Times

O que Beauvais sabe sobre sua infância vem de recordações fragmentadas e de "pedacinhos que ouvi de diferentes pessoas", disse ele ao ser entrevistado em sua casa em Sechelt, cidade na costa da província da Colúmbia Britânica. É uma propriedade grande, onde ele e a mulher criam cavalos.

Seu pai morreu de uma doença quando ele tinha três anos. Sua mãe, Laurette, então levou os três filhos, incluindo Beauvais, para onde foi criada, o povoado métis de St. Laurent. Ele vivia com os avós numa cabana separada de uma rodovia por um pântano que só podia ser atravessado no outono e no inverno.

A família falava cree e francês. Sua avó fazia vinho de dente-de-leão e esquentava pedras num fogão a lenha para aquecer as camas das crianças. "O que é triste é que não me lembro do nome dela", disse Beauvais. Ele só conhece o sobrenome de seus avós –que é o mesmo que seu nome de batismo, Richard.

Depois que seus avós morreram, Beauvais teve que começar a tomar conta das duas irmãs. Ele diz se lembrar do sangue que escorreu sobre a fralda da irmã quando ele acidentalmente a machucou com um alfinete. Recorda-se de procurar comida no lixo. E de ficar esperando a mãe diante da "entrada feminina" do bar local. Quando tinha oito ou nove anos, chegou o dia que descreve como o pior de sua vida. Membros do governo invadiram a cabana para levar ele e suas irmãs quando os três estavam sozinhos.

Beauvais conta que se lembra de ter chutado e socado uma funcionária que deu um tapa em uma de suas irmãs quando a menina estava chorando e de depois ser jogado de um telhado. As crianças acabaram sendo levadas para uma sala pintada de rosa onde, diz Beauvais, foram "escolhidas como se fossem filhotes de cachorro" por pais adotivos. Ele se lembra que foi o último a ser levado. "Não havia compaixão alguma", diz ele. "Se você era indígena, os funcionários do governo não se importavam com você."

Mais tarde, descobriria que sua mãe havia sido impedida de cuidar dele e das irmãs como parte de uma política de assimilação forçada do Canadá dos anos 1960. O plano ignorava questões de segurança social da população indígena para, em vez disso, promover a retirada em grande escala, às vezes forçada, de crianças indígenas de suas famílias para que elas pudessem ser adotadas por famílias brancas.

Por sorte, diz Beauvais, ele foi parar em uma família carinhosa e acolhedora, os Pools, com quem mantém laços até hoje. Ele aprendeu inglês, mas esqueceu o francês e o cree. Beauvais diz que se lembra de uma vez comparecer no tribunal porque sua mãe tentava, em vão, recuperar a guarda dos filhos.

Na zona rural de Manitoba, onde as comunidades indígenas e brancas convivem desde os tempos do comércio de peles, Beauvais diz que se deslocava com facilidade entre os dois mundos. Aos 16, mudou-se para a Colúmbia Britânica para trabalhar com pesca comercial. Acabou se tornando proprietário de uma firma de soldagem e de barcos de pesca comercial em que trabalham tanto indígenas e não indígenas.

Ele nunca tentou ganhar reconhecimento oficial como métis e, por isso, nunca recebeu benefícios especiais do governo. Também assistiu à transformação radical da política do Canadá em relação à população indígena, que buscou reparar o trauma da política de assimilação forçada por meio de pedidos de desculpas públicas, indenizações e organização de projetos que celebrem suas culturas.

"Foi duro ser indígena na minha época", comenta Beauvais. "Não era algo visto como bacana como é hoje."

Beauvais diz que, atualmente, sente-se como da primeira vez em que conversou com Ambrose: ele não sabe o que fazer com sua nova identidade. "Tenho 67 anos e de repente sou ucraniano", afirma. "Nunca estive com ucranianos. Já contei piadas sobre ucranianos, mas será que realmente quero ir atrás disso?", questiona ao abordar a possibilidade de pesquisar mais sobre sua ascendência recém-descoberta.

Já Ambrose mergulhou em uma busca intensa acerca da própria identidade. Criou vínculos com uma irmã biológica que mora perto dele e começou a fazer trabalhos manuais com contas, um tipo de artesanato tradicional da etnia métis. Foi ele quem propôs entrar com uma ação judicial contra a província de Manitoba em busca de um pedido de desculpas e de uma indenização ao lado Beauvais.

Um representante do governo provincial afirmou que não podia comentar o assunto porque o hospital onde ocorreu a troca de bebês era de responsabilidade da Prefeitura de Arborg na época. Uma porta-voz da organização à qual o hospital pertence hoje, Interlake-Eastern Regional Health Authority, disse que os registros dos nascimentos não estão mais disponíveis.

Ambrose quer ser reconhecido como um métis, em parte para que seus netos tenham direito a benefícios reservados a representantes da etnia –apesar de reconhecer que nunca sofreu discriminação. "Posso conseguir o que é meu por direito", diz ele. "Não pedi isso –não pedi para ser trocado na maternidade."

Quanto a Beauvais, ele diz que não trocaria a vida que levou por outra. "Porque tenho duas filhas lindas, uma esposa linda e três netas lindas. Sim, é claro que eu poderia ter tido isso com outra pessoa. Mas não seriam essas mesmas crianças nem essa mesma mulher."

Mesmo assim, quando o teste revelou que ele não tinha origem indígena, viveu uma sensação de perda. "Era algo que era meu, que ninguém podia tirar de mim", explica Beauvais, que ainda usa o termo "nós" quando fala de indígenas canadenses. "Agora não sou mais indígena, mas na minha cabeça sempre serei."

Tradução de Clara Allain

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