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Coletânea de textos sobre Cuba contemporânea só dá certo em parte

Obra que buscava provar êxito de socialismo do país faz retrato tão explícito do regime que acaba por evidenciar seus problemas

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São Paulo

Imaginemos um livro com o seguinte título: "Entre a Utopia e o Cansaço - Pensar Cuba na Atualidade". E nos perguntemos se ele não despertaria curiosidade política e vontade de leitura.

Pois é mais ou menos o caso desse lançamento da Editora Elefante. Os três professores universitários que fizeram a edição traziam um projeto editorial que deu certo apenas em parte.

Manifestantes protestam contra regime de Miguel Díaz-Canel em Havana, capital de Cuba - Yamil Lage - 11.jul.2021/AFP

Com os 22 textos que selecionaram, os organizadores queriam mais uma vez provar que o socialismo cubano é um êxito, e que seus defeitos são apenas culpa indireta, por exemplo, dos Estados Unidos.

Mas o retrato que o livro traz da ditadura é tão explícito que os problemas do regime implantado em janeiro de 1959 pelos guerrilheiros de Fidel Castro acabam sendo evidenciados aos borbotões.

Em verdade, e esta é uma das qualidades do trabalho, estamos fora do eixo editorial que por décadas colocou a ditadura cubana no altar dos modelos incensados ou no purgatório ideológico daquilo que nunca poderia ser feito.

A Guerra Fria deu uma coloração hedionda a uma experiência histórica já ruim, pois liberticida e incapaz de produzir suficiente comida ou tirar a ilha da pobreza —ao contrário, por exemplo, do socialismo da antiga Alemanha Oriental.

Mas vamos ao que interessa.

Os cubanos se equilibraram em dois períodos economicamente difíceis. Com a queda da União Soviética e do amparo russo, o PIB encolheu 36%, e o orçamento, 60%. Entrou o turismo como fonte externa de divisas.

Mas em 2020 veio a pandemia. E mais uma vez Cuba quase parou.

O livro evoca de modo esparso algumas das consequências disso. Os 30 mil estrangeiros que até 2018 se alojavam lá pelo Airbnb caíram em 2022 para 9.300.

Eis que a crise também reforçou o papel dos militares. Sim, senhores. Eles mandam na economia e estão de tal modo dependentes do Partido Comunista e da estrutura empresarial que —detalhe que o livro não menciona— a burocracia cubana se vacinou contra a má surpresa de um golpe de Estado.

Os militares controlam o mercado de câmbio, o turismo, a mineração e o transporte aéreo. Têm ainda tentáculos em 800 empresas por meio de um conglomerado, a Gaesa, cuja contabilidade soma metade das receitas cubanas.

O livro descreve a eclosão de movimentos de protestos que seriam em princípio inimagináveis na ilha.

O primeiro emergiu em novembro de 2020. A polícia invadiu a sede do Movimento San Isidro, que não era reconhecido pelos cronogramas oficiais. Um grupo de ativistas fazia greve de fome por um rapper detido. O movimento se ampliou, mas as autoridades conseguiram circunscrevê-lo à esfera do Ministério da Cultura.

O segundo movimento de protesto eclodiu em julho do ano seguinte, em San Antonio de los Baños, cidade próxima a Havana. Em poucas horas, ele se expandia por toda a ilha. Reivindicava-se liberdade de expressão, o fim das lojas em que se comprava em dólar (a partir de 2019 os alimentos básicos da libreta de racionamento também puderam ser comprados na moeda americana, o que aumentou a desigualdade social), pedia-se a renúncia do líder Miguel Díaz-Canel e uma melhor distribuição das vacinas contra a Covid-19.

Com relação às vacinas, a burocracia cubana foi inábil. Pesquisou dois produtos próprios, não entrou no consórcio da Organização Mundial de Saúde (OMS) e aplicou seu próprio imunizante muito lentamente. A população temia a morte e rejeitava a lentidão.

O episódio refletiu a insensibilidade do governo a um movimento não programado da opinião pública. Os burocratas não têm esse tipo de percepção fora das democracias.

Mas a programação dos debates internos no país existiu quando da discussão do novo Código das Famílias que, votado em referendo em setembro de 2022, instituiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Cuba refez sua reputação com a comunidade LGBTQIA+, que não a perdoava porque o comunismo herdara os preconceitos hispânico-caribenhos contra essa população. O conservadorismo entrou em Cuba por uma nova porta, a dos pentecostais. A Assembleia de Deus local é partidária de uma ideia mais que tradicional da família monogâmica e heterossexual. A questão é bem abordada no livro.

Mas se fosse para resumir a ideia de Cuba transportada no trabalho, é possível destacar um trecho em que a ilha aparece em traços bem mais cruéis. A Revolução "criou um Estado burocrático, centralizado e controlador que impôs o dogma do socialismo, sufocando as liberdades populares por meio de repressão e exílio. O modelo castrista reproduziu características do stalinismo soviético, do qual dependia economicamente." É bem isso.

Entre a Utopia e o Cansaço - Pensar Cuba na Atualidade

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