Imaginemos um livro com o seguinte título: "Entre a Utopia e o Cansaço - Pensar Cuba na Atualidade". E nos perguntemos se ele não despertaria curiosidade política e vontade de leitura.
Pois é mais ou menos o caso desse lançamento da Editora Elefante. Os três professores universitários que fizeram a edição traziam um projeto editorial que deu certo apenas em parte.
Com os 22 textos que selecionaram, os organizadores queriam mais uma vez provar que o socialismo cubano é um êxito, e que seus defeitos são apenas culpa indireta, por exemplo, dos Estados Unidos.
Mas o retrato que o livro traz da ditadura é tão explícito que os problemas do regime implantado em janeiro de 1959 pelos guerrilheiros de Fidel Castro acabam sendo evidenciados aos borbotões.
Em verdade, e esta é uma das qualidades do trabalho, estamos fora do eixo editorial que por décadas colocou a ditadura cubana no altar dos modelos incensados ou no purgatório ideológico daquilo que nunca poderia ser feito.
A Guerra Fria deu uma coloração hedionda a uma experiência histórica já ruim, pois liberticida e incapaz de produzir suficiente comida ou tirar a ilha da pobreza —ao contrário, por exemplo, do socialismo da antiga Alemanha Oriental.
Mas vamos ao que interessa.
Os cubanos se equilibraram em dois períodos economicamente difíceis. Com a queda da União Soviética e do amparo russo, o PIB encolheu 36%, e o orçamento, 60%. Entrou o turismo como fonte externa de divisas.
Mas em 2020 veio a pandemia. E mais uma vez Cuba quase parou.
O livro evoca de modo esparso algumas das consequências disso. Os 30 mil estrangeiros que até 2018 se alojavam lá pelo Airbnb caíram em 2022 para 9.300.
Eis que a crise também reforçou o papel dos militares. Sim, senhores. Eles mandam na economia e estão de tal modo dependentes do Partido Comunista e da estrutura empresarial que —detalhe que o livro não menciona— a burocracia cubana se vacinou contra a má surpresa de um golpe de Estado.
Os militares controlam o mercado de câmbio, o turismo, a mineração e o transporte aéreo. Têm ainda tentáculos em 800 empresas por meio de um conglomerado, a Gaesa, cuja contabilidade soma metade das receitas cubanas.
O livro descreve a eclosão de movimentos de protestos que seriam em princípio inimagináveis na ilha.
O primeiro emergiu em novembro de 2020. A polícia invadiu a sede do Movimento San Isidro, que não era reconhecido pelos cronogramas oficiais. Um grupo de ativistas fazia greve de fome por um rapper detido. O movimento se ampliou, mas as autoridades conseguiram circunscrevê-lo à esfera do Ministério da Cultura.
O segundo movimento de protesto eclodiu em julho do ano seguinte, em San Antonio de los Baños, cidade próxima a Havana. Em poucas horas, ele se expandia por toda a ilha. Reivindicava-se liberdade de expressão, o fim das lojas em que se comprava em dólar (a partir de 2019 os alimentos básicos da libreta de racionamento também puderam ser comprados na moeda americana, o que aumentou a desigualdade social), pedia-se a renúncia do líder Miguel Díaz-Canel e uma melhor distribuição das vacinas contra a Covid-19.
Com relação às vacinas, a burocracia cubana foi inábil. Pesquisou dois produtos próprios, não entrou no consórcio da Organização Mundial de Saúde (OMS) e aplicou seu próprio imunizante muito lentamente. A população temia a morte e rejeitava a lentidão.
O episódio refletiu a insensibilidade do governo a um movimento não programado da opinião pública. Os burocratas não têm esse tipo de percepção fora das democracias.
Mas a programação dos debates internos no país existiu quando da discussão do novo Código das Famílias que, votado em referendo em setembro de 2022, instituiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Cuba refez sua reputação com a comunidade LGBTQIA+, que não a perdoava porque o comunismo herdara os preconceitos hispânico-caribenhos contra essa população. O conservadorismo entrou em Cuba por uma nova porta, a dos pentecostais. A Assembleia de Deus local é partidária de uma ideia mais que tradicional da família monogâmica e heterossexual. A questão é bem abordada no livro.
Mas se fosse para resumir a ideia de Cuba transportada no trabalho, é possível destacar um trecho em que a ilha aparece em traços bem mais cruéis. A Revolução "criou um Estado burocrático, centralizado e controlador que impôs o dogma do socialismo, sufocando as liberdades populares por meio de repressão e exílio. O modelo castrista reproduziu características do stalinismo soviético, do qual dependia economicamente." É bem isso.
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