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The New York Times

Tempos sombrios se aproximam para meu país

No final dos anos 1960 a ditadura militar prendeu e encarcerou muitos artistas e intelectuais. Eu fui um deles. Os militaristas estão de volta

Rio de Janeiro | The New York Times

“O Brasil não é para principiantes”, dizia Tom Jobim. Compositor de “Garota de Ipanema”, Jobim foi um dos músicos mais importantes do Brasil, alguém a quem podemos agradecer pelo fato de que amantes da música em todo o mundo precisam pensar duas vezes antes de enquadrar o pop brasileiro na categoria “world music”.

Quando contei a um amigo brasileiro sobre a frase do mestre, ele respondeu: “Nenhum país é”. Meu amigo americano tinha certa razão. Talvez o Brasil não seja tão especial assim, sob alguns aspectos.

Neste momento meu país está provando que é uma nação como muitas outras. Como outros países pelo mundo afora, o Brasil enfrenta uma ameaça da extrema direita, uma tempestade de conservadorismo populista.

Nosso novo fenômeno político, Jair Bolsonaro, previsto para vencer a eleição presidencial deste domingo, é um ex-capitão do Exército que admira Donald Trump, mas se parece mais com Rodrigo Duterte, o ditador das Filipinas. Bolsonaro defende a venda irrestrita de armas de fogo, propõe a premissa de autodefesa quando um policial mata um “suspeito” e declara que um filho morto é preferível a um filho que seja gay.

Se Bolsonaro vencer a eleição, os brasileiros podem prever uma onda de medo e ódio. Na verdade, já houve derramamento de sangue. No dia 7 de outubro um partidário de Bolsonaro esfaqueou meu amigo Moa do Katendê, músico e mestre de capoeira, após uma divergência política. A morte dele deixou a cidade de Salvador em estado de luto e indignação.

Ando pensando nos anos 1980. Eu estava gravando discos e fazendo concertos com lotação esgotada, mas sabia o que precisava mudar em meu país.

Naquela época os brasileiros estávamos lutando por eleições livres, após cerca de 20 anos de ditadura militar. Se alguém tivesse me dito então que algum dia elegeríamos para a Presidência pessoas como Fernando Henrique Cardoso e depois Lula, teria parecido um sonho impossível. Então aconteceu.

A eleição de FHC em 1994 e a de Lula em 2002 tiveram um peso simbólico tremendo. Elas mostraram que éramos uma democracia; mudaram a forma de nossa sociedade, pelo fato de ajudarem milhões de pessoas a escapar da pobreza. A sociedade brasileira passou a se respeitar mais.

Porém, apesar de todo o progresso e da aparente maturidade do país, o Brasil, a quarta maior democracia do mundo, está longe de ter uma democracia sólida. Forças obscuras, internas e externas, parecem nos estar fazendo retroceder e afundar.

A vida política no país está em declínio há algum tempo, a começar por uma recessão econômica, seguida por uma série de protestos em 2013, pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e por um enorme escândalo de corrupção que levou muitos políticos à cadeia, incluindo Lula. Os partidos de FHC e de Lula saíram gravemente feridos, e a extrema direita enxergou uma oportunidade.

Muitos artistas, músicos, cineastas e pensadores se encontraram em um ambiente onde ideólogos reacionários, por meio de livros, sites e artigos jornalísticos, vêm desacreditando qualquer tentativa de superar a desigualdade, vinculando políticas sociais progressistas a um pesadelo do tipo venezuelano, suscitando o medo de que os direitos das minorias possam erodir os princípios religiosos e morais, ou simplesmente doutrinando as pessoas a aceitar a brutalidade com o uso sistemático de linguagem difamadora.

A ascensão de Bolsonaro como figura mítica realiza as expectativas criadas por esse tipo de ataque intelectual. Não é um intercâmbio de argumentos: aqueles que não creem na democracia atuam de maneira insidiosa.

Os grandes veículos de imprensa vêm tendendo a minimizar o perigo, na prática trabalhando em favor de Bolsonaro ao descreverem a situação como um confronto entre dois extremos: o Partido dos Trabalhadores potencialmente nos conduzindo a um regime autoritário comunista, enquanto Bolsonaro vai supostamente combater a corrupção e abrir a economia ao mercado.

Muitos da grande imprensa ignoram intencionalmente o fato de que Lula respeitou as normas democráticas e que Bolsonaro tem reiteradamente defendido a ditadura militar dos anos 1960 e 1970. De fato, em agosto de 2016, quando votou pelo impeachment de Rousseff, Bolsonaro fez questão de dedicar publicamente seu voto a Carlos Alberto Brilhante Ustra, que comandou um centro de tortura nos anos 1970.

Como figura pública no Brasil, é meu dever tentar lançar luz sobre esses fatos. Hoje estou velho, mas eu era jovem nos anos 1960 e 1970 e me lembro. Por isso preciso me manifestar.

No final da década de 1960, o governo militar prendeu e encarcerou muitos artistas e intelectuais por suas posições políticas. Eu fui um deles, ao lado de meu amigo e colega Gilberto Gil.

Gil e eu passamos uma semana cada em uma cela imunda. Depois, sem explicação alguma, fomos transferidos para outra prisão militar por dois meses. Em seguida foram quatro meses de prisão domiciliar até finalmente partirmos para o exílio, onde passamos dois anos e meio.

Outros estudantes, escritores e jornalistas estavam presos nas celas onde ficamos, mas nenhum deles foi torturado. À noite, porém, ouvíamos os gritos de outras pessoas. Ou eram presos políticos que os militares pensavam estar ligados a grupos de resistência armada ou eram jovens pobres presos roubando ou vendendo drogas. Aqueles sons nunca saíram de minha cabeça.

Alguns dizem que as declarações mais brutais de Bolsonaro não passam de fachada. De fato, ele soa muito como muitos brasileiros comuns; ele demonstra abertamente a brutalidade superficial que muitos homens pensam que precisam ocultar.

Segundo todas as pesquisas, o número de mulheres que votam nele é muito menor que o de homens. Para governar o Brasil ele terá que enfrentar o Congresso, o Supremo Tribunal e o fato de que as pesquisas indicam que uma maioria maior que nunca de brasileiros diz que a democracia é o melhor sistema político de todos.

Citei a frase de Jobim –“o Brasil não é para principiantes”— para dar um toque de cor divertida a minha visão dos tempos difíceis que enfrentamos.

O grande compositor estava usando de ironia, mas ele revelou uma verdade e destacou as peculiaridades de nosso país, um país gigantesco do hemisfério sul, uma nação mestiça e a única das Américas que tem o português como sua língua oficial. Amo o Brasil e acredito que ele pode levar novas cores à civilização; creio que a maioria dos brasileiros também o ama.

Muitas pessoas aqui dizem que pretendem ir viver no exterior se o capitão vencer a eleição. Eu nunca quis viver em nenhum outro país senão o Brasil. E não quero agora. Fui forçado a viver no exílio uma vez. Isso não vai voltar a acontecer. Quero que minha música, minha presença, seja uma resistência permanente a qualquer traço antidemocrático que possa sair de um provável governo Bolsonaro.

Caetano Veloso é compositor, cantor, escritor e ativista político brasileiro.

Tradução de Clara Allain

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