Ministério sabia desde 2020 que só Butantan poderia vender Coronavac, diz Dimas Covas

Diretor do instituto paulista afirma que negociação de Pazuello com intermediários reforça vontade do governo Bolsonaro de afastar Butantan

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Brasília

O diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, disse nesta sexta-feira (16) que o Ministério da Saúde sabe desde 2020 que o laboratório ligado ao Governo de São Paulo é o único autorizado a comercializar a Coronavac no Brasil e na América Latina.

Para Covas, a negociação do ex-ministro da Saúde e general da ativa Eduardo Pazuello por 30 milhões de doses por intermediários, revelada pela Folha, reforça que o governo Jair Bolsonaro queria afastar o Butantan.

"Mostra que havia de fato, tudo aquilo que foi dito, que havia objetivo mesmo de deixar o Butantan de fora. Tem mesmo um subterrâneo aí muito cruel", disse ele.

Pazuello prometeu, em vídeo gravado em 11 de março e obtido pela Folha, comprar a Coronavac de um grupo de empresários que ofereceu formalmente as doses à Saúde por quase o triplo do valor negociado pelo Butantan.

"[O governo federal] Não só sabia [da exclusividade do Butantan], como fez parte das várias conversas com o ministério. Butantan sempre se apresentou como representante da Sinovac. Isso era de conhecimento tácito", disse Covas.

Bolsonaro resistiu em negociar a Coronavac e segue desacreditando a eficácia do imunizante.

Em outubro de 2020, ele forçou Pazuello a recuar de uma promessa de compra da vacina. “Um manda e outro obedece”, justificou o general em vídeo ao lado do mandatário. Bolsonaro chegou a chamar o imunizante de "vacina de João Doria", o governador paulista e inimigo político do presidente.

No vídeo da reunião, que não está registrada na agenda oficial, Pazuello afirma que já havia assinado memorando de entendimento para a compra.

“Já saímos daqui hoje com o memorando de entendimento já assinado e com o compromisso do ministério de celebrar, no mais curto prazo, o contrato para podermos receber essas 30 milhões de doses no mais curto prazo possível para atender a nossa população”, diz o então ministro, segundo quem a compra seria feita diretamente com o governo chinês", disse o general.

Covas disse que o Butantan chegou a acionar autoridades e a Embaixada da China para apurar ofertas da Coronavac feitas no Brasil por intermediários, sem aval da fabricante Sinovac.

O diretor do Butantan disse que não conhecia a negociação revelada pela Folha. As tratativas foram feitas pelo ministro com pessoas que diziam representar a World Brands, uma empresa de Santa Catarina que lida com comércio exterior.

A proposta da empresa, obtida pela Folha, oferece os 30 milhões de doses da vacina do laboratório chinês Sinovac pelo preço unitário de US$ 28, com depósito de metade do valor total da compra (R$ 4,65 bilhões, considerando a cotação do dólar à época) até dois dias após a assinatura do contrato.

Naquele dia, 11 de março, o governo brasileiro já havia anunciado, dois meses antes, a aquisição de 100 milhões de doses da Coronavac do Instituto Butatan, pelo preço de US$ 10 a dose. A demissão de Pazuello seria tornada pública por Bolsonaro quatro dias depois, em 15 de março.

Além da discrepância no preço, o encontro fora da agenda contradiz o que Pazuello afirmou em depoimento à CPI da Covid, em 19 de maio. Aos senadores o general disse que não liderou as negociações com a Pfizer sob o argumento de que um ministro jamais deve receber ou negociar com uma empresa.

“Pela simples razão de que eu sou o dirigente máximo, eu sou o 'decisor', eu não posso negociar com a empresa. Quem negocia com a empresa é o nível administrativo, não o ministro. Se o ministro... Jamais deve receber uma empresa, o senhor [senador Renan Calheiros] deveria saber disso”, disse Pazuello à CPI.

No vídeo, um empresário que Pazuello identifica como “John” agradece a oportunidade do ministro recebê-lo e diz que podem ser feitas outras parcerias “com tanta porta aberta que o ministro nos propôs”.

O grupo majoritário da CPI da Covid quer chamar John a explicar a oferta. Três pessoas que acompanharam a reunião disseram que o vídeo foi gravado mesmo antes de Pazuello conhecer o preço da vacina.

A reunião dos empresários foi marcada com o gabinete de Elcio Franco, que recebeu o grupo. Segundo ex-assessores da pasta, Pazuello foi chamado à sala, ouviu o relato da reunião e fez o vídeo.

Após a gravação, de acordo com os relatos colhidos pela Folha, parte da equipe do ministro pediu que os empresários não compartilhassem o vídeo, que foi feito por meio do aparelho celular do empresário identificado como "John".

Um dos assessores de Pazuello teria alertado o general após a reunião de que a proposta era incomum, acima do preço, e a empresa poderia não ser representante oficial da fabricante da vacina.

Caso o negócio fosse adiante, as doses seriam as mais caras contratadas pelo ministério, posto hoje ocupado pela indiana Covaxin (US$ 15), que tem o contrato suspenso por suspeitas de irregularidades.

O Ministério da Saúde afirmou, em nota divulgada após a publicação da reportagem, que desconhece qualquer memorando de entendimento feito pela gestão Pazuello. "A atual gestão da pasta não tem conhecimento de memorando de entendimentos para aquisição de doses da Coronavac", disse. Atual secretário-executivo do ministério, Rodrigo Cruz disse à Folha que soube do caso apenas pela imprensa.

A Saúde, porém, não respondeu quem pediu para a reunião ser marcada, e quais empresários e autoridades da pasta participaram da conversa.

Para a CPI da Covid, o governo desdenhou de negociações diretas com fabricantes como a Pfizer, enquanto abriu as portas para representantes de intermediárias que atuavam sem o aval dos laboratórios.

Procurados, Pazuello, Franco e a Casa Civil —onde os militares hoje despacham como assessores de Bolsonaro— não se manifestaram sobre a reunião do dia 11 de março.

Em nota, a Sinovac disse que APENAS (em letras garrafais, na resposta em inglês) o Instituto Butantan pode oferecer a Coronavac no Brasil.

O empresário identificado como "John" afirmou à Folha que havia uma cota da Coronavac que poderia ser ofertada ao Brasil.

Ele disse ser um “parceiro” da World Brand, mas encerrou a conversa telefônica com a reportagem quando foi questionado sobre detalhes das negociações e nomes dos presentes na reunião, como o dele mesmo.

A World Brands disse apenas: “Proposta efetuada, nenhuma resposta efetiva recebida, negócio não efetuado”. A empresa não quis informar o nome dos participantes da reunião e se eles tinham de fato aval da Sinovac para a venda ao governo. ​​

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