Doria e ex-secretários vão para o Lide sob vácuo de regra para conflito de interesses

Outro Lado: Empresa nega conflito de interesses sob a justificativa de que os cargos são consultivos e sem remuneração

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São Paulo

O ex-governador João Doria e secretários que trabalharam com ele no Governo de São Paulo foram anunciados pelo Lide, empresa fundada pelo ex-tucano, para assumirem funções de conselheiros após deixarem a administração pública, o que, segundo especialistas, abre discussão sobre risco de conflito de interesses.

A legislação estadual é omissa sobre quarentena obrigatória para agentes públicos que migram para a iniciativa privada, diferentemente da norma federal. A ida de dois titulares de secretarias estaduais para a empresa foi divulgada enquanto eles ainda exercem suas atividades no governo.

O Lide nega conflito de interesses sob a justificativa de que os cargos são consultivos e sem remuneração. O governo, reiterando a existência da lacuna no regramento, diz que a lei estadual não estabelece nenhuma restrição nesses casos.

O ex-governador de São Paulo e vice-chairman do Lide, João Doria, durante entrevista à Folha - Bruno Santos - 3.nov.22/Folhapress

Cinco especialistas das áreas de direito público e ética ouvidos pela Folha consideram a situação problemática, mas confirmam que as diretrizes estaduais não estabelecem tempo mínimo de afastamento, o que entendem ser uma falha.

A quarentena é imposta para inibir, por exemplo, o uso de informações privilegiadas de governo em negócios privados.

O Código de Ética da Administração Pública Estadual, de 2014, estabelece que todos os agentes do governo paulista "devem pautar-se pelos padrões da ética" e observar princípios da Constituição como legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e interesse público.

A única menção a conflito de interesses é a recomendação genérica de que ele deve ser evitado. Sucinto, o código não detalha o que é vetado a funcionários em exercício nem fixa regras para depois da saída do cargo. Denúncias devem ser analisadas pela Comissão Geral de Ética.

Para o Executivo federal, uma lei de 2013 proíbe que, nos seis meses após o desligamento, a pessoa preste serviço ou aceite cargo, inclusive de conselheiro, em empresa que atue na área de seu posto anterior. A Comissão de Ética Pública deve ser consultada para esclarecer se há ou não restrição.

Além de Doria, que retornou ao Lide após renunciar ao governo, a empresa anunciou a entrada dos ex-secretários Henrique Meirelles (Fazenda) e Rossieli Soares (Educação) e dos atuais secretários Fernando José da Costa (Justiça) e Sérgio Sá Leitão (Cultura), nomeados por Doria e mantidos por Rodrigo Garcia (PSDB).

Também foi comunicada a chegada de Ivan Lima, secretário-executivo de um comitê ligado ao governo, o Centro de Equidade Racial para o Desenvolvimento Socioeconômico. Lima não é servidor, mas já foi designado como representante do poder público em comissões.

Todos têm atuação voluntária, segundo o Lide. Doria e Meirelles integram o "advisory board" (conselho consultivo superior dentro da estrutura do grupo). Os dois foram anunciados em junho, cerca de dois meses após deixarem o governo, com início das atividades em 1º de julho.

Os outros ex e atuais secretários foram convidados para vagas de presidente no comitê de gestão do Lide, em funções relacionadas à temática de suas pastas na administração pública.

Rossieli, Costa e Sá Leitão vão coordenar, respectivamente, as áreas de educação, Justiça e cultura. Lima vai responder pela seção de equidade racial.

Em relação ao ex-governador, a legislação paulista também é omissa sobre quarentena. Se fosse aplicada a regra de presidente da República, ele teria que cumprir afastamento de seis meses.

Doria se desligou oficialmente do comando de seu grupo empresarial após virar prefeito da capital paulista, em 2016, e voltou ao Lide com o malogro de sua candidatura presidencial.

Criado em 2003, o Lide se notabilizou por promover eventos com empresários, investidores, políticos e autoridades. Os encontros são criticados por suposta prática de lobby, o que a empresa nega.

A atuação de lobistas não é regulamentada no Brasil. Um projeto de lei com essa finalidade foi aprovado em novembro na Câmara dos Deputados e seguiu para o Senado.

Alexandre de Moraes discursa, ao lado de outros ministros do Supremo Tribunal Federal, durante conferência do Lide em Nova York no mês passado - Vanessa Carvalho - 14.nov.22/Lide/Divulgação

O conflito de interesses tem traços subjetivos e particulares, segundo os especialistas. Dois dos entrevistados pediram anonimato porque integraram as comissões de ética estadual e federal.

A avaliação comum é que há uma "zona cinzenta" e que a movimentação merece atenção. Uma eventual investigação ou punição ficaria limitada em razão do vácuo normativo e só ocorreria diante de denúncia fundamentada.

No entanto, para Vera Chemim, advogada constitucionalista e mestre em direito público pela FGV, há elementos para transpor a regra federal em um hipotético processo.

"Dependeria da interpretação do Judiciário. A meu ver, é um caso de insegurança jurídica. Como são aspectos constitucionais e a legislação estadual é deficitária em previsões para quem sai do cargo, deve ser aplicado o princípio da analogia e usada a essência da regra federal", diz.

Guilherme Siqueira de Carvalho, que pesquisa corrupção e ética na Universidade da Pensilvânia (EUA), afirma que a ausência de remuneração "pode atenuar o conflito de interesses, mas não é suficiente para afastar a preocupação", já que "o interesse privado pode se manifestar por outros meios problemáticos".

Para Marilene Matos, advogada das áreas administrativa e constitucional, "mesmo que não se enquadre na regra estrita, o fato de agentes públicos irem tão rápido para uma empresa já coloca em xeque as atuações".

A natureza das atividades do Lide foi citada pelos especialistas como um complicador. Todos falaram em tese, já que não há indícios de irregularidades.

Lide nega conflito, e governo diz que lei não impõe restrições

O Lide disse em nota que "não há qualquer conflito de interesses" na atuação de seu comitê de gestão, que "é consultivo, sem qualquer tipo de remuneração" e "apoia as iniciativas em curadoria de conteúdo —e não de negócios".

A empresa afirma que Doria e Meirelles se desligaram da carreira pública em abril e que Costa, Sá Leitão, Rossieli e Lima "iniciarão as atividades, oficialmente, em janeiro de 2023, quando já não terão qualquer vínculo público".

"O Lide não pratica lobby. É um grupo independente, apartidário, multissetorial e multilateral. Atua há 20 anos com lisura, promovendo de maneira ética o diálogo e o debate de relevantes questões econômicas e sociais."

O governo afirmou que "a legislação dos servidores públicos e dos agentes políticos do estado de São Paulo não estabelece nenhuma restrição para a atividade profissional de ex-secretários após a saída do cargo".

As assessorias de Doria, Costa e Sá Leitão não fizeram comentários adicionais aos do Lide e do governo.

Meirelles afirmou que seu papel na empresa não é executivo. "Sou meramente um membro do conselho consultivo."

Rossieli disse que não exerce cargo público há mais de sete meses, desde abril, e que sua "atribuição nesse conselho é de caráter consultivo, para sugestão de temas", e envolve "competência técnica, sem nenhuma alçada na esfera de negócios ou acordos".

Lima afirmou que não possui vínculo com a administração pública e que sua atuação no Lide será voluntária e consultiva, "para apoio às iniciativas em curadoria de conteúdo sobre equidade racial". Ele, assim como Rossieli, concorreu a deputado federal pelo PSDB e não se elegeu.

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