Coronavírus: o dramático aumento da atividade dos pedófilos virtuais com o isolamento

Assédio online e consumo de conteúdo de pedofilia subiram na Espanha e Itália

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Angelo Attanasio
Londres | BBC News Mundo

“Olá”, cumprimenta alguém em um fórum. “Agora, com essa quarentena quase global, vocês acham que haverá mais crianças no XXX?”, pergunta então, referindo-se a um site de downloads cujo nome preferimos omitir.

O fórum que coleta esse comentário é um dos muitos na chamada deep web, a internet que não pode ser acessada pelos mecanismos de busca e fica oculta, que estão sob investigação da Unidade Central de Crimes Cibernéticos (UCC, na sigla em espanhol) da polícia espanhola.

“Círculos pedófilos. É assim que os chamamos”, explica a inspetora Cecilia Carrión, integrante do Grupo 3 de Proteção de Menores da UCC. “Lá eles compartilham opiniões, expressam livremente seus desejos, suas fantasias, trocam conselhos.”

ilustradção da Luiza Pannunzio mostra uma menina chorando com pedras em suas costas; uma mão gigante deposita uma pedra maior ainda no monte
Luiza Pannunzio

Nesses mesmos fóruns, alguém pergunta se haverá “pessoas com packs (pacotes)” com crianças e se subirão os novos materiais em uma determinada plataforma online.

Os “packs” aos quais eles se referem geralmente são fotos ou vídeos de crianças, muitas vezes nuas ou enquanto estão sendo abusadas ​por um adulto. “Neste caso”, esclarece Carrión, “refere-se a entrar em contato com menores e convencê-los a realizar atos eróticos ou sexuais”.

Embora esse tipo de interação seja comum entre pedófilos, as autoridades espanholas verificaram um notável aumento de suas atividades devido ao confinamento pela pandemia de coronavírus.

“Uma das questões mais recorrentes desde o início do confinamento na Espanha é como os pedófilos podem tirar proveito dessa situação”, afirma a inspetora.

Em alguns desses comentários, alguém descreve explicitamente como gostaria de passar a quarentena com uma criança em casa, enquanto outra pergunta se o confinamento é uma boa oportunidade para obter novos conteúdos nas plataformas de download.

Segundo dados aos quais a BBC News Mundo teve acesso, na semana de 17 de março (três dias após o governo espanhol declarar estado de emergência) ao dia 24, foram registrados cerca de 17 mil downloads de material com pornografia infantil.

Na semana seguinte, de 24 a 31 de março, o número de downloads foi para 21 mil, um aumento de quase 25%. “Agora diminuiu um pouco e se estabilizou, mas ainda há mais downloads do que o normal”, diz Carrión. Mas não é um problema que diz respeito apenas à Espanha.

Em um relatório do Europol, a inteligência policial da União Europeia, publicado no início de abril, sua diretora-executiva, Catherine de Bolle, disse estar “preocupada com o aumento do abuso sexual infantil online” nos países mais afetados pela pandemia.

“Estamos todos em casa e constantemente conectados. Todos tentamos fazer online o que não podemos fazer pessoalmente”, diz Nunzia Ciardi, chefe da polícia italiana de Correios e Telecomunicações. “E todos os crimes cibernéticos estão crescendo.”

A Itália foi, por várias semanas entre março e abril, o país com o maior número de casos de infecção por Covid-19 e mortes no mundo. Foi também o primeiro país ocidental a declarar, em 9 de março, o estado de confinamento em todo o território nacional.

“Nossos indicadores mostram que nesse período há um aumento de crimes de pornografia infantil e chantagem sexual de menores”, diz Ciardi.

Segundo os dados aos quais a BBC News Mundo teve acesso, entre 1º de março e 15 de abril de 2019, foram registrados 83 crimes relacionados à pornografia infantil virtual na Itália. No mesmo período deste ano —que coincide com o da quarentena—, houve 181 denúncias, mais que o dobro.

Além disso, até este ano, a polícia italiana apreendeu 108.123 gigabytes desse tipo de conteúdo digital, o que equivale a baixar no celular 50 vezes a série inteira da Netflix “La Casa de Papel”. Por fim, a polícia italiana registrou uma diminuição em 2020 na idade média das vítimas: até o momento, os mais afetados são os menores de 10 a 13 anos.

Muitos dos alertas que chegam à polícia em todo o mundo vêm do Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas, com sede nos Estados Unidos. A organização possui um serviço chamado CyberTipline, por meio do qual os provedores de serviços eletrônicos dos EUA e as empresas de tecnologia (Microsoft, Facebook, Twitter, Google, TikTok, entre outras) são obrigadas por lei a denunciar se detectarem em qualquer lugar do mundo conteúdo de abuso infantil.

O Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas analisa esses relatórios e os compartilha com as autoridades policiais dos países onde o abuso ocorreu.

Em março deste ano, a instituição recebeu acima de 2 milhões de notificações deste tipo de material, mais que o dobro do número relatado no mesmo mês de 2019. “É um aumento dramático”, disse John Shehan, vice-presidente do centro.

“Os pedófilos se adaptam facilmente ao contexto”, explica Marie-laure Lemineur, vice-diretora executiva da ECPAT International, uma ONG que trabalha há 30 anos no combate à exploração sexual de crianças. “Nunca na história tantas crianças estiveram conectadas, e isso aumenta as chances delas estarem em risco.”

No entanto, Lemineur esclarece: “O modo de agir, de operar e os conselhos que eles dão uns aos outros são os mesmos de sempre”. Segundo a inspetora espanhola Carrión, a grande maioria dos pedófilos que atua online compartilha três características. A primeira é que “em 99% dos casos são homens”. “Tem de tudo, desde adolescentes, incluindo alguns entre 13 e 15 anos, a aposentados.

E de todas as classes sociais, de desempregados a imigrantes até altos executivos e médicos respeitáveis.” A segunda característica é que os que chegam a esse tipo de fórum “são pedófilos com um certo conhecimento tecnológico”. Isso permite que tomem medidas de proteção para navegar o mais anonimamente possível, e depois compartilham informações entre si. “Até encontramos manuais com dicas sobre como evitar uma investigação policial.”

Algumas dessas recomendações variam, por exemplo, do tipo de sistema usado para navegar na internet, quais palavras-chave usar para encontrar o conteúdo pornográfico e por qual plataforma fazer o download.

Frequentemente, o conteúdo não é baixado de um servidor, mas de outro computador em que está armazenado. “Como o material original está armazenado nos computadores de outros pedófilos, ele estará sempre em circulação constante e é muito difícil eliminá-lo, porque não há um servidor para o qual recorrer”, explica Carrión.

“Quando esses vídeos se tornam virais entre os pedófilos, é impossível removê-los dessas redes”, acrescenta David Reguero, membro do grupo de proteção infantil da polícia espanhola. Todas as autoridades consultadas para esta reportagem também alertam para outros dois problemas que possivelmente surgirão nos próximos meses, quando o confinamento terminar.

“São problemas que, geralmente, ocorrem após as férias de Natal, Páscoa ou o verão, ou seja, quando as crianças passam mais tempo em casa, na frente do computador ou com seus celulares, conectados à internet”, diz Reguero, que, nos últimos 12 anos, foi responsável por rastrear esse tipo de conteúdo.

“Nessas ocasiões, sempre notamos um aumento de novos vídeos de abuso e nos casos de ‘grooming’ [o assédio a menores por meio da internet]”, ou seja, o truque que faz a criança realizar atividades de conteúdo sexual.

Os abusadores geralmente usam um perfil falso nas redes sociais mais frequentadas por menores ou fingem ser um deles nas conversas de jogos online populares, como o Fortnite.

Assim que conseguem chamar a atenção e ganhar a confiança, eles começam a pedir fotos ou vídeos, nus ou em atitudes sexuais. Diversas fontes indicam que muitos vídeos de crianças gravando-se nuas vêm do site de bate-papo online Omegle. Os criminosos então usam essas mesmas imagens para chantagear ou ameaçá-las para conseguir mais.

“Esses casos não são fáceis de descobrir. O agressor consegue manter a criança coagida por semanas ou até meses. As queixas chegam até nós quando a criança não consegue mais lidar com isso e
conta aos pais, ou porque os pais conseguem descobrir”, conta Reguero.

Mas casos de assédio online por desconhecidos não são as únicas ameaças enfrentadas por crianças confinadas em casa. “Na maioria das imagens de abuso sexual infantil, os adultos pertencem ao círculo íntimo da vítima”, afirma Marie-laure Lemineur, cuja organização, ECPAT internacional, opera em 102 países.

“Pode ser o irmão, o pai, o avô ou um amigo da família que produz as imagens. Essas crianças vivem com os agressores, que, durante a quarentena, têm mais oportunidades de produzir esse conteúdo.”

Segundo Lemineur, esse é um problema que afeta todos os países, tanto do lado da demanda quanto da oferta. De fato, as autoridades policiais e organizações de outros países como os Estados Unidos, a Dinamarca, a Suécia e o Brasil alertaram para o problema.

“Algumas polícias, especialmente as dos países ocidentais, estão mais conscientes desse fenômeno”, conclui Lemineur. “Mas apenas porque não é tão visível em outros lugares, não significa que não exista.”


Brasil é o 4° país no ranking mundial de casamento infantil

Fonte: Fundação das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)

90% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são registrados no ambiente familiar

Fonte: Ouvidoria Nacional do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH)

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