Em extinção, sauim-de-coleira enfrenta selva urbana de Manaus

Crescimento desordenado e falta de política de preservação adequada ameaçam os macacos

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Manaus

No dia 3 de fevereiro, um sauim-de-coleira adulto com dois filhotes abraçados às costas tentou cruzar uma movimentada avenida de Manaus saltando de uma árvore para outra. Sobrecarregado, o pequeno primata perdeu o equilíbrio.

Os três desabaram sobre um carro e ricochetearam para o asfalto. Por sorte, o veículo que estava atrás parou a tempo, e o motorista, um policial civil, levou os três para o Cetas (Centro de Triagem de Animais Silvestres), do Ibama.

Atropelamentos de sauins-de-coleira são comuns em Manaus, mas não ocorrem em nenhum outro lugar do mundo. A tragédia da espécie, em perigo crítico de extinção, é que, dos 6 milhões de km² da Amazônia, o simpático animal de pelagem branca e marrom vive em apenas 7.500 km² (0,1% da floresta).​ E foi justamente no seu reduzido espaço que os humanos estabeleceram a maior região metropolitana da bacia amazônica, com 2,7 milhões de habitantes.

O adulto macho (não há como saber se é o pai) acabou ferido. Mas os filhotes, cada um pesando 65 gramas, escaparam ilesos, e a coordenadora do Cetas, a bióloga Natalia Lima, decidiu levá-los ao local do acidente na esperança de reuni-los com o grupo.

No dia seguinte, a equipe do Cetas colocou os dois sauins, agarrados a bichos de pelúcia, sobre uma plataforma coberta de folhas e frutas. De quase tudo certo: o grupo se aproximou, e um dos filhotes, batizado de Tico, logo trepou no lombo de um adulto.

Animada, a equipe de Lima, que coordena o único Cetas do Amazonas, continuou levando quase diariamente o segundo filhote, o Teco, ao mesmo local, no bairro Tarumã, onde Manaus segue avançando sobre a floresta amazônica.

Até que, em 19 de fevereiro, uma das árvores que formavam a passagem aérea sobre a avenida foi derrubada para dar lugar a mais uma construção. O grupo não mais passaria pelo local. Teco e o adulto, com problemas neurológicos, foram então levados para o Centro Nacional de Primatas, perto de Belém (PA).

Estudioso do sauim-de-coleira há duas décadas, o biólogo da UFAM (Universidade Federal do Amazonas) Marcelo Gordo explica que, em um cálculo frio, a população urbana não é crucial para a sobrevivência da espécie. Dos estimados 30 mil indivíduos na natureza, pouco mais de mil sobrevivem nos fragmentos de floresta cada vez menores da cidade.

Para o pesquisador, as razões para preservar os grupos urbanos são de ordem ética e passam por mudar o paradigma da ocupação urbana de Manaus, uma cidade que se expandiu de forma descontrolada a partir da implantação da Zona Franca, nos anos 1970, comendo a floresta, matando a fauna e contaminando igarapés.

Sauins de Coleira são vistos em um sítio localizado no bairro Tarumã, em Manaus (AM)
Sauins-de-coleira são vistos em um sítio localizado no bairro Tarumã, em Manaus (AM) - Bruno Kelly - 16.mai.2021/Folhapress

“Trata-se mais de uma oportunidade para buscar sensibilizar as pessoas”, afirma Gordo. “Por outro lado, eticamente, é muito complicado abrir mão de tentar salvar os grupos daqui só porque as populações da cidade são pouco representativas.”

A principal iniciativa para preservar a espécie na cidade foi a criação, em 2018, da APA (Área de Proteção Ambiental) Sauim-de-Manaus, após pressão do Ministério Público Federal (MPF) sobre a prefeitura. Com 10 milhões de metros quadrados, funcionaria como um corredor ecológico para aumentar a conectividade entre os fragmentos de floresta. A sobrevivência das populações urbanas depende da conexão, mesmo que parcial, entre esses fragmentos, segundo o biólogo.

Três anos depois, no entanto, as travessias caras e complexas sobre grandes avenidas nunca saíram do papel. “Não existe nenhuma iniciativa para efetivar esse novo corredor. Mas quem sabe daqui a 20 anos chega um gestor iluminado e decide desapropriar alguns terrenos, fazer uma ponte aérea de vegetação”, diz Gordo.

Outro problema são os fragmentos de floresta em mãos de particulares, investimentos imobiliários que podem ser desmatados a qualquer momento, como no local do acidente de fevereiro.

Para os biólogos, a solução passa pela criação de parques públicos nesses locais, tanto para os sauins quanto os manauaras, que atualmente dispõem de apenas dois parques públicos com acesso livre.

“O que é bom para o sauim também é bom para cidade”, diz Lima, do Cetas, em meio à algazarra vinda de jaulas repletas de diversos animais resgatados, de preguiças a jaguatiricas.

“Para conservá-lo, é preciso manter a floresta. E a floresta é qualidade de vida: o ar mais saudável, um microclima mais agradável, a qualidade do solo. A questão ambiental é muito sistêmica, e o sauim é parte disso.”

Fora do casco urbano, a situação é menos crítica, mas também preocupa. Os sauins-de-coleira habitam quatro grandes áreas preservadas, o Cigs (Centro de Instrução de Guerra na Selva), do Exército, com 114 mil hectares, a Reserva Florestal Adolpho Ducke, de 10 mil hectares e as RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável) Puranga Conquista e do Tupé, que são contíguas e somam 88,9 mil hectares.

No Plano de Ação Nacional para a Conservação do Sauim-de-Coleira, criado em 2011 com a participação de Gordo, estabeleceu-se a meta de assegurar populações separadas com um mínimo de 500 indivíduos em oito áreas protegidas de pelo menos 10 mil hectares. Nesse desenho, o Cigs é computado como apenas uma área, assim como as duas RDS. Ou seja, são três populações separadas.

Uma quarta área protegida seria uma nova reserva biológica federal, mas o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), já anunciou o veto da proposta, “Há um pedido aqui, pronto para ser assinado, para a criação da Reserva Biológica Sauim-de-Coleira”, disse, em 2019, ao governador Wilson Lima (PSC), durante reunião com governadores da Amazônia Legal.

“É uma área bastante grande [que] corrobora no sentido de inviabilizar cada vez mais o desenvolvimento sustentável.” O mandatário amazonense não contestou.


Raio-x

Sauim-de-coleira

Nome científico 
Saguinus bicolor

Família
Callitrichidae (a mesma de saguis e micos)

Tamanho 
De 450 e 550 gramas de peso e 28 a 32 cm de comprimento, com uma cauda entre 38 e 42 cm

Distribuição 
Restrita a 7.500 km² nos municípios contíguos de Manaus, Rio Preto da Eva e Itacoatiara

População estimada na natureza
30 mil indivíduos

Habitat
Florestas antigas em bom estado de conservação, florestas secundárias em estado avançado e intermediário de regeneração, igapós, chavascais e matas ciliares

Fonte: Plano de Ação Nacional para Conservação do Sauim-de-Coleira (ICMBio, 2017) e pesquisador Marcelo Gordo (Ufam)

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