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Tecnologia moderniza reciclagem, mas trabalho humano é indispensável, dizem especialistas

Agenda ESG e logística reversa abrem mercado de reciclagem para startups

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Ane Silva e Gilberto Santos, catadores do projeto Roda, durante coleta em Rio Vermelho, bairro de Salvador Rafaela Araújo - 5.abr.2022/Folhapress

São Paulo

Indispensável na gestão do lixo e cada vez mais valorizada à medida que a crise climática bate à porta, a cadeia da reciclagem passou as últimas décadas praticamente incólume à revolução digital. Esse cenário começou a mudar recentemente, quando startups identificaram oportunidades de negócio na área.

A introdução da tecnologia, porém, não exclui a enorme quantidade de trabalhadores envolvidos na atividade, indispensáveis para a qualidade da reciclagem, segundo especialistas.

Um desses exemplos está em Carapicuíba, na Grande São Paulo. Ali, da calçada da marginal Córrego Cadaval, o pedestre mal consegue acompanhar os apressados carros que atravessam a via. Há um veículo, porém, que de hora em hora desponta no horizonte em passos lentos.

São carroças com muito mais peso do que deveriam carregar: papelão, garrafas e latinhas lotam a traseira dos carrinhos de catadores de recicláveis. Eles vêm para descarregar parte do volume que coletaram nas ruas da cidade da Grande São Paulo. O destino, porém, não é um ferro velho, mas uma startup —a Green Mining.

Desde o final de 2021, funciona ali uma estação que paga pelo menos seis vezes mais ao catador por garrafas de vidro —resíduo de matéria-prima abundante e, por isso, de menor valor na cadeia de reciclagem.

A estação Preço de Fábrica, como foi batizada, é um dos projetos da Green Mining. Em outro, os próprios funcionários da startup buscam os materiais em bares e restaurantes da região.

Matheus Magalhães, 27, está nessa função desde 2018, mas sua principal tarefa é registrar as informações dos resíduos que chegam no ponto por meio de catadores autônomos.

Os dados são inseridos em um aplicativo e registrados em blockchain, sistema que se popularizou com a difusão das criptomoedas. A ferramenta é uma espécie de livro público da internet, praticamente impossível de ser violado.

"Nenhum dado pode ser alterado. A gente garante que ninguém vai aumentar ou reduzir o que já foi coletado" afirma um dos fundadores da empresa, Rodrigo Oliveira. "Todos os dados estão abertos. A gente coloca o volume de materiais que está sendo coletado diretamente no nosso site. Lá as pessoas podem ver quanto foi coletado a cada dia. Se foi 1 quilo, vai aparecer 1 quilo. Se foi 1 tonelada, vai aparecer 1 tonelada."

Com o financiamento de grandes produtores de embalagens, o vidro que chega ali vai para empresas de embalagens e volta para as prateleiras, processo que aumenta a vida útil dos aterros, gasta menos energia e poupa recursos naturais.

Modernização das leis abre oportunidades

A aprovação da lei para a Política Nacional de Resíduos Sólidos, em 2010, e a assinatura do Acordo Setorial de Embalagens, em 2015, abriram um flanco para as empresas de tecnologia, que passaram a atuar como um braço logístico da reciclagem para grandes companhias.

A lei dispõe sobre a logística reversa, ou seja, o caminho de volta das embalagens após o consumo. Já o acordo, feito entre grandes empresas e poder público, determinava a redução de no mínimo 22% das embalagens levadas a aterros até 2018.

​Nesse contexto, a apresentação de notas fiscais tornou-se um expediente comum para comprovar a reciclagem. Empresas intermediárias compram esses créditos de um dos elos da cadeia (uma cooperativa, por exemplo), e os vende para companhias que precisam prestar contas sobre as suas embalagens.

É um sistema parecido com o mercado de créditos de carbono, explica Flávia Cunha, fundadora da Casa Causa, hub de soluções para economia circular. A empreendedora, porém, faz ressalvas à aplicação desse método no Brasil.

"É quase que uma moeda de troca", afirma. "Não tem uma auditoria, você não consegue ver esse fluxo acontecer. Só vê a troca de papel, não vê a troca do reciclável. Falta rastreabilidade."

O empresário Dione Manetti nomeou a simples comercialização de créditos de "monetização de papel".

Dione Manetti, 46, e Luana de Oliveira, 37, na cooperativa de reciclagem que trabalha em parceria com a Pragma - Danilo Verpa - 1º.abr.2022/Folhapress

"Eu me aproprio de um resultado que já existe na cadeia, mas eu não invisto na base dela para ampliar a sua capacidade de recuperação", afirma.

A Pragma, sua empresa, lança mão desse recurso, vendendo notas fiscais adquiridas com as cooperativas para as companhias que precisarem comprovar a logística reversa. Os papéis passam por um sistema que verifica a sua validade junto à Receita Federal e confere a assinatura eletrônica.

Mas a real diferença, diz ele, está no acompanhamento da verba: a cooperativa parceira estabelece um preço pelas notas, mas a Pragma participa do plano de ações.

"Se eu simplesmente pagar a cooperativa e não acompanhar e planejar junto, eu corro o risco de que esse dinheiro seja apropriado por poucas pessoas", diz.

Na pandemia de Covid-19, por exemplo, a renda foi a prioridade dos cooperados da Cooperzagati, de Taboão da Serra, na Grande São Paulo. "Foi fundamental. A gente não tinha para quem vender", afirma Luana Oliveira, presidente da cooperativa parceira da Pragma.

Cooperados separam recicláveis em esteira elétrica - Danilo Verpa - 1º.abr.2022/Folhapress

Falta de investimento pode encarecer processo a longo prazo

A aposta no aumento da capacidade dos elos dessa cadeia é mais do que uma questão de princípio. Com a atualização das legislações a respeito da reciclagem, a tendência é que a demanda pelo serviço prestado pelas cooperativas cresça muito.

"Está começando a cair a ficha do mercado. Se não investirem na capacidade de recuperação, o valor por tonelada vai ficar muito caro", diz Manetti.

O empresário é pessimista quanto às iniciativas de startups que têm despertado para o mercado nos últimos anos.

"Os catadores sozinhos não vão conseguir dar conta de recuperar 100% dos resíduos. Mas a gente obrigatoriamente tem que garantir o espaço deles nesse mercado, porque foram eles que inventaram isso no Brasil. Quando ninguém falava de reciclagem, já existia milhares de famílias no país que viviam e sobreviviam disso", afirma Manetti.

Resíduos selecionados e prensados na Cooperzagati esperam o encaminhamento para uma indústria de reciclagem - Danilo Verpa - 1º.abr.2022/Folhapress

Os catadores são os primeiros da cadeia a colocar as mãos nos resíduos para impedir que eles sejam enterrados, destino de mais de 26 milhões de toneladas de recicláveis por ano no país, segundo estimativa da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais).

O MNCR (Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis) estima que existam 800 mil catadores no Brasil. O Anuário da Reciclagem de 2021 mapeou 9.754 desses profissionais em 358 organizações de materiais recicláveis. A estimativa é que 54% sejam mulheres, e 76,1%, negros.

Em 2020, as 326,7 mil toneladas recuperadas pelas organizações de catadores tiveram o potencial de reduzir 153,321 mil toneladas de CO₂, segundo o Anuário da Reciclagem.

No bairro de Periperi, a pouco mais de uma hora de transporte público do Pelourinho, cartão postal do centro de Salvador, Genivaldo Ribeiro sustenta a sua família há dez anos com a renda que consegue com a reciclagem.

Ele é um dos fundadores da Cooperguary, que nasceu da tentativa de limpar o rio que passa na comunidade.

"O ambiente influencia em tudo na nossa vida. A gente está vendo como a chuva está destruindo as plantações, o que vai impactar a alimentação e encarecer tudo", afirma Tico, como é conhecido.

Tico, diretor da Cooperativa de Trabalho dos Agentes Ecológicos do Paraguary, em Periperi - Rafaela Araújo - 5.abr.2022/Folhapress

Pagamento pelo trabalho dos cooperados aumenta volume da coleta

Na sede da cooperativa onde Tico é diretor, os materiais prensados se empilham na direção das frestas do telhado, que com o enorme portão da fachada dão luz suficiente para os 20 cooperados minerarem os objetos que chegam dos caminhões.

Cada um na sua baia, eles trabalham no mesmo compasso: no meio do galpão, uma das recicladoras separa o plástico azul da capa dos fichários de papelão que devem ter sido úteis em um arquivo, enquanto outro desmonta eletrônicos antigos para procurar o material mais valorizado da reciclagem: o cobre.

Há dois colaboradores, porém, que mudaram a rotina nos últimos dois meses. De terça a sábado, Ane Silva e Gilberto Santos trocam o trajeto para a vizinha Cooperguary por um galpão no Rio Vermelho, bairro boêmio de Salvador.

Ali pegam triciclos e saem pelo bairro fazendo a coleta de recicláveis em casas e restaurantes que se inscreveram no programa Roda, da startup baiana Solos.

Com financiamento de grandes empresas, a startup firma parcerias temporárias com cooperativas. Uma das condicionantes do contrato é disponibilizar dois cooperados para fazer a rota.

É a segunda vez que a Cooperguary participa do projeto. Na primeira, quando a pandemia estava em uma fase aguda, a ajuda foi importante para a própria sobrevivência da cooperativa, segundo Tico, que viu a concorrência aumentar com a crise econômica.

"Aqui em Salvador nós víamos muito menos gente catando material. O que estamos vendo agora não é o catador nato, que cata todos os dias, mas o espontâneo. Ele está desempregado, passando dificuldades, e está catando para levar o sustento para casa. Isso impacta direto no trabalho da cooperativa", conta ele.

A estratégia de financiamento vai ao encontro do que Tico reivindica em qualquer oportunidade: a remuneração do trabalho das cooperativas. Ele já se cansou de mobilizar caminhão e colaboradores para chegar a um destino e conseguir apenas uma caixa de vidro. Com o pagamento, a remuneração do trabalho está garantida. "Aí todo material é lucro", diz ele.

Quem tem interesse em doar seus resíduos deve cadastrar seus dados em um site e agendar um dia para a coleta. Com base nessas informações, a startup programa uma rota e avisa os catadores por WhatsApp.

"Tecnologia é um calcanhar de Aquiles para a gente hoje. Entendemos que é fundamental, não só para garantir uma operação mais eficiente, mas também para ter um rastreamento de dados que seja mais confiável", afirma Saville Alves, fundadora da empresa.

Mas o investimento precisa ser alto.

Ane Silva e Gilberto Silva Santos, da Cooperguary, saem da Casa Mar, no Rio Vermelho, para fazer a coleta do dia - Rafaela Araújo - 5.abr.2022/Folhapress

Tecnologia pode permitir um 'Uber de recicladores'

"Geolocalização, como faz Uber e iFood, é super caro. Hoje a gente não consegue colocar", afirma Alves. "Parece algo simples, porque está no nosso dia a dia, mas só as grandes conseguem fazer em tempo real."

Em um mundo ideal, conta, o cooperado estaria cadastrado em um aplicativo onde os agendamentos chegariam conforme o local em que estivesse —uma Uber de recicladores. A meta é conseguir um sistema do tipo em dois ou três anos.

Para a coordenadora de projetos da ONG Sustentar, Jacqueline Rutkowski, a invasão da tecnologia no setor é interessante porque amplia o número de soluções para a destinação do lixo.

"Muitas vezes, quando você não tem a política pública funcionando, esses aplicativos facilitam o encaminhamento dos resíduos para a reciclagem", afirma. Mas a automatização tem os seus limites, segundo a engenheira, especialmente quando se fala de grandes maquinários.

Cooperada separa resíduos em Taboão da Serra, São Paulo - Danilo Verpa - 1º.abr.2022/Folhapress

"É mais difícil ter equipamentos que sejam capazes de separar do lixo essa miríade de materiais recicláveis que a gente tem hoje", explica ela. Máquinas de sopro, por exemplo, podem separar o papel. Ímãs selecionam materiais ferrosos. Mas plástico é praticamente impossível sem a atividade humana.

"Onde os catadores atuam você consegue aproveitar uma variedade melhor de recicláveis", afirma. "Nesse sentido, a tecnologia social desenvolvida por eles é muito mais eficiente."

Esta reportagem foi feita com a bolsa de produção jornalística sobre reciclagem inclusiva da Fundação Gabo e Latitud R

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