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'É hora de tirar os nerds do poder', diz pesquisador sobre internet

Jeff Jarvis faz paralelo entre criação da prensa por Gutenberg e advento da internet: 'Ainda estamos no início dessa era'

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São Paulo

"É hora de tirar os nerds do poder", diz o escritor Jeff Jarvis sobre os executivos e fundadores do Vale do Silício. Para ele, pessoas como Elon Musk e Mark Zuckerberg não deveriam ter tanto poder de decisão.

Com o passar do tempo, as pessoas deixarão de perceber a internet como uma inovação tecnológica, afirma. Será algo dado como o livro, inventado por Gutenberg em 1439. A discussão passará a ser, então, sobre pessoas. Jarvis parte dessa comparação para refletir sobre a nova era dos dados e das conexões no livro "The Gutenberg Parenthesis", lançado em junho e ainda sem tradução para português.

Jeff Jarvis, 61, professor da City University de Nova York. Jarvis é um homem branco, de cabelos brancos, vestido em costume preto, camisa branca e sem gravata. Está de braços cruzados. A foto foi tirada em um laboratório da universidade.
Jeff Jarvis, 69, professor da City University de Nova York - Arquivo pessoal

O sr. tem discutido o impacto transformador da invenção de Gutenberg. Por que escolheu voltar à invenção da prensa em seu novo livro?
Percebi há algum tempo que o negócio da internet é matar o modelo de negócios da mídia de massa. Com isso, morre também a ideia de massa. Para escrever sobre isso, teria de olhar para a história da mídia e de onde essa demanda por transformação veio. Sou fascinado pelo personagem Gutenberg. Foi um empreendedor e tecnólogo no sentido real da palavra. Daí entra essa teoria do parêntese de Gutenberg, de um acadêmico dinamarquês [Tom Pettit], que argumenta que a era da imprensa foi uma exceção na história e que temos oportunidade de recapturar alguns dos aspectos de como era a vida antes disso. Isso me fez pensar no que podemos aproveitar agora que saímos da era da palavra impressa. Os dados substituíram a palavra impressa como o princípio organizacional da sociedade.

O sr. discute no livro as revoluções institucionais que a internet e a IA (inteligência artificial) trarão. O conhecimento histórico vai ser crucial na discussão do que a sociedade vai ser nesta nova era?
A história não se repete e a tecnologia não determina nosso destino, nós ainda tomamos as decisões. Mas, sim, há lições do passado. Uma que tive na minha pesquisa foi quanto tempo levou para as formas da palavra impressa se consolidarem. Demorou 50 anos para que o livro, como nós conhecemos hoje, tomasse forma, com índice, páginas numeradas e títulos. Outros 150 anos antes de vermos o romance moderno, o ensaio, as peças impressas de Shakespeare e o jornal. Isso me faz pensar se estamos em uma linha do tempo similar na internet atual. A IA e os dados podem ser apenas catalisadores da mudança como a imprensa foi no passado, de mudança de uma era em que meus pais e outras pessoas viveram.

Não devemos esperar que as empresas resolvam todos os problemas, embora possamos cobrar que elas façam melhor. O pessoal do Vale do Silício não causou todos os problemas da sociedade americana. Os EUA já eram um país sexista, desigual e injusto muito antes da internet.

Jeff Jarvis

professor da City University of New York

Isso significa mudança na sociedade?
A imprensa, em princípio, foi vista como uma grande tecnologia, mas com o tempo o que era inovação fica chato e tomado como garantido. Mas o que as pessoas fizeram com isso? Agora vamos ver a internet à mesma luz, deixará de ser algo dos engenheiros e programadores. Não é sobre as empresas deles. É sobre os seres humanos. É sobre como nos conectamos e o que fazemos com essas ferramentas. É hora de tirar os nerds do poder. Eles não deveriam estar a cargo de tudo que humanistas e pessoas das humanidades deveriam decidir, como era antes.

Boa governança que empodera as pessoas deveria discutir quem detém os dados e escolhe as normas das redes sociais, certo?
Sim, mas as pessoas também esperam muito da internet. Por trás das empresas de tecnologia, estão empreendimentos humanos. O problema não é com a tecnologia, que conecta todos nós, no nosso melhor e no nosso pior. Temos expectativas muito altas. A internet é nada além de uma conversa gigante, isso não vai ser polido como a Folha. É uma praça pública, onde várias pessoas se juntam, algumas são inteligentes, outras são estúpidas e algumas estão erradas. Não devemos esperar que as empresas resolvam todos os problemas, embora possamos cobrar que elas façam melhor. O pessoal do Vale do Silício não causou todos os problemas da sociedade americana. Os EUA já eram um país sexista, desigual e injusto muito antes da internet.

Comparando a história da palavra impressa com a história da internet, dá para dizer que os novos formatos da internet, como a Web 2.0 de Google e redes sociais, são inovações como o jornal e o romance moderno?
Nós nem sequer sabemos definir o que é a internet ainda. Ainda estamos ocupados tentando recriar o mundo antigo, de forma que publicações online pareçam revistas e jornais. Não reinventamos a educação, que ainda prepara pessoas para trabalhar em fábricas. Governos ainda estão ancorados em plataformas locais. Minha comunidade pode se espalhar por todo mundo. Já há, de qualquer forma, pequenos exemplos, e um deles é o TikTok. Para mim, é a primeira plataforma construída pensando na colaboração, que só é possível graças à internet.

Não concordo com as pessoas por trás da inteligência artificial que falam que a humanidade vai ser destruída, isso é marketing exagerado.

Jeff Jarvis

professor da City University of New York

E as instituições e normas de antes ainda funcionam?
Precisamos reconsiderá-las. Propriedade intelectual ainda vale algo, quando podemos colaborar de forma conjunta em todas as formas possíveis? Quem estava no poder desafiou de certa forma a inovação que Gutenberg trouxe, a imprensa teve um grande impacto na ideia do que era uma nação, porque ajudou a padronizar as línguas e, por consequência, a ideia que as pessoas têm do que é uma nação. Nossa forma de organização será assim para sempre? Não sei, vamos ver. Não quero sugerir que a tecnologia por definição muda tudo isso, mas nos dá a chance de fazer novas decisões.

A inteligência artificial pode mudar o modo como as pessoas se expressam na internet?
Nosso status na sociedade como escritores acaba sendo menos importante quando uma máquina pode escrever com coerência. Por outro lado, grandes modelos de linguagem, como existem hoje, não deveriam ser usados para jornalismo, porque erram nos fatos. Mas há oportunidades, quero saber se esses modelos podem ajudar pessoas intimidadas a escrever ou mesmo ajudar iletrados a contar suas histórias. Não concordo com as pessoas por trás da inteligência artificial que falam que a humanidade vai ser destruída, isso é marketing exagerado.

No seu livro, o sr. mostra como a mecanização da imprensa afetou empregos, como discutimos que a IA pode fazer agora, mas que essas pessoas se realocaram. O sr. acredita que trabalhadores vão se adequar a novas atividades digitais?
O passado mostra que novas tecnologias levam a novas áreas e novos empregos. Mas é difícil dizer isso para os escribras que escreviam cada livro na Alemanha antes da imprensa de Gutenberg, que foram substituídos como cavalos foram por carros. Parte do ego da sociedade na época da imprensa foi pensar que poderia controlar ou impedir esse processo. James Dewar, da RAND Corporation, mostra que os países que tentaram controlar a imprensa não se desenvolveram com a mesma rapidez do que aqueles onde havia mais liberdade de impressão.

Já há sites feitos totalmente por IA sem edição humana e eles são péssimos.
Vamos ter que decidir o que tem credibilidade e o que não. Antes, contratávamos jornalistas e editores para fazer isso por nós. Agora, há essa abundância de conteúdo, e cabe a cada um de nós perceber o que é verdade. Os novos serviços que precisamos inventar talvez estejam aí. As antigas instituições de edição e publicação criadas na era da imprensa não conseguem lidar com o volume de discursos que circula hoje. Precisamos de novas instituições.

Se usássemos essas máquinas para decidir quem é preso ou quem entra na faculdade, seria terrível. Se perguntássemos à máquina o porquê dessa decisão, ficaríamos sem resposta. Ainda precisamos fazer julgamentos humanos e a máquina pode nos ajudar definindo fatores de risco de um empréstimo, por exemplo. Mas também precisamos reconhecer que máquinas criam vieses por usar dados do passado e o passado está cheio de preconceitos, injustiças e desigualdade.

Jeff Jarvis

professor da City University of New York

Parte da sociedade pede que as novas IAs sejam explicáveis, mas mesmo os desenvolvedores não entendem como tudo corre dentro desses algoritmos. É importante resolver esse dilema?
A ideia de que em algum momento poderíamos explicar todo o mundo é provavelmente autoengano. A dura realidade vai nos atropelar e mostrar o quão pouco do mundo é compreensível. Ciência e estudos explicam parte da realidade. O filósofo David Weinberger diz que machine learning pode prever coisas melhor do que nós, mas não oferece explicações de como faz isso. Tudo é baseado em dados. O modelo pega todas as possibilidades e diz qual é a mais provável de acontecer. Vai ser frustrante para as pessoas e autoridades quando entenderem isso. David disse algo que me fascinou: nós chamamos de acidente o que desistimos de explicar.

Se não sabemos como a decisão foi tomada, só que foi orientada por dados, isso não seria diferente de ser governado por esses algoritmos, como se fossem um Deus?
Sim, não acho que deveríamos ouvir o que as máquinas dizem de forma sumária, mas considerar isso como mero dado. Se usássemos essas máquinas para decidir quem é preso ou quem entra na faculdade, seria terrível. Se perguntássemos à máquina o porquê dessa decisão, ficaríamos sem resposta. Ainda precisamos fazer julgamentos humanos e a máquina pode nos ajudar definindo fatores de risco de um empréstimo, por exemplo. Mas também precisamos reconhecer que máquinas criam vieses por usar dados do passado e o passado está cheio de preconceitos, injustiças e desigualdade. Só assim ajustaremos esses sistemas para que funcionem de forma responsável.

Essas novas companhias costumam vender a ideia de que IAs serão centrais no desenvolvimento da humanidade. Esse discurso ainda é marketing?
Algumas IAs vão ser capazes de fazer coisas incríveis. Podem avaliar quantidades incríveis de dados sobre câncer ou exames de imagem. Os modelos podem reconhecer padrões que nossos olhos não necessariamente reconhecem. Isso poderá ajudar médicos a diagnosticar e mesmo a prever doenças. Mas a tecnologia divulgar milhões de matérias estúpidas não vai ajudar ninguém. Não sei o quanto a IA vai mudar o mercado de trabalho e nossas vidas, provavelmente não tanto quanto essas empresas preveem, mas provavelmente de várias maneiras surpreendentes.

É muito comum pessoas da tecnologia falarem que o mundo está em uma exponencial de crescimento. É viável dizer que estamos no mesmo ritmo da era de Gutenberg?
É difícil demonstrar um crescimento exponencial agora. Está se multiplicando como nunca. As adaptações precisam ser rápidas como nunca antes trabalhadas. Isso pode ser assustador para alguns, mas não me assusta, sobretudo porque sou velho demais para saber como essa história vai terminar. Mas nada é inevitável, nada é determinado pela tecnologia, temos escolhas a fazer e devemos tomar decisões mais sábias porque temos a vantagem das lições do passado.

RAIO-X

Jeff Jarvis, 69, é professor de jornalismo na City University of New York e pesquisa sobre internet. Destrinchou o funcionamento do Google no best-seller "O que o Google faria?" em 2011. Foi um pioneiro dos blogs, ao conseguir conquistar grandes audiências com o site BuzzMachine, em que comentava sobre jornalismo e política.

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