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Multietnia super-heróica
IVAN LESSA
COLUNISTA DA BBC BRASIL
Desde garoto que super-herói para mim e os de minha geração sempre foram multiétnicos. A começar por onde poderiam ser encontrados.
Nos "gibis", ou histórias em quadrinhos, as HQ, num tempo feliz que passou quando ainda não haviam inventado o pretensioso e tolíssimo "romance gráfico". O simples fato de ir até ao jornaleiro da esquina dar mil réis ou mil e quinhentos e pedir o mais recente Globo Juvenil, Gibi Mensal ou Guri já dava o tom multiétnico.
Afinal de contas o que queria dizer "gibi", aquele pretinho que se escondia parcialmente atrás da letra inicial das revistinhas da Globo? Continua lá no Houaiss: garoto negro, negrinho, publicação infantojuvenil em quadrinhos.
Vivíamos, mal sabendo, uma avançada multietnia sem nos darmos conta. Não sei como era no resto da América Latina ou no mundo, mas desconfio que, nesse setor, fomos pioneiros. Além do mais, era tudo em branco e preto e os diálogos e as legendas eram feitas em composição (isso encarecia um produto que tinha de ser barato) e não cuidadosamente desenhadas como nos originais atuais. Era a Idade de Ouro da HQ e feliz de quem dela participou. "Gibi" debaixo do braço, pelada na rua ou na praia, cinema poeira de tarde. Oi, vida boa, sô!
Mais: os super-heróis ainda não tinham esse cacoete de ficarem sentados no parapeito de um edifício e ficar matutando existencialismos, ultrapassados há meio século. O Príncipe Submarino, o Tocha Humana, o Capitão América, agora mesmo redivivo com sucesso no cinema, toda essa gente, mais um zilhão de outros que no momento não me ocorrem (a cada dia que passa menos coisas me ocorrem), tinham mais que fazer, mais vilões a combater do que ficar "enimesmando" truísmos tolos.
Os super-heróis falavam português mais que razoável, pois eram bem traduzidos, que o digam quem adaptou Pafúncio e Marocas, Praxedes Porcalhão e o Pinduca (no original um insosso Henry) e pai e mãe que proibiram os filhos de ler "gibi" não estavam com nada, eles que se virassem, e muito mal, com o jornal do dia, 250 gramas de manteiga e a alta cultura dos poemas de J.G. de Araujo Jorge e outras sandices.
Duas coisas que deveriam mas nunca me invocaram: por que é que uma boa parte dos super-heróis tinha sempre um garoto para -- sejamos francos -- só atrapalhar as coisas? Tocha Humana com seu Centelha, Batman e Robin, Capitão América e Bucky e por aí afora. Nossas mentes jovens, mantidas sãs em pleno Estado Novo graças às HQ, nunca enxergaram maldade nesse tipo de relacionamento de adultos fantasiados e de máscara na face com infantojuvenis também vestidos em trajes que, em retrospecto, alguns maldosos chamariam de "provocantes". Hoje em dia, minha Nossa!, seria caso de polícia ou coisa pior. Caso de chamar o Pinguim, o Caveira Vermelha, esses grandes e subestimados vilões para darem um corretivo nos super-heróis acompanhados de "dimenor" travestido.
A outra coisa que me passou completamente despercebida e, já que me recuso a penitenciar-me, foi não notar, não ligar para a total ausência de super-heróis negros ou latinos. Haviam negros, sem dúvida. Só que sempre em trabalho serviçal. Como o caso de Lothar do Mandrake (embora mantivesse a dignidade de sua ascendência africana mediante o uso de roupas típicas de sua tribo ou o que fosse) e, essa me chateia um pouco, o Ébano do grande, do esplêndido Will Eisner, criador do Espírito, pouco super e muito herói.
Eisner, a uma certa altura, tentou transformar o Ébano num garoto ruivo e sardento, mas o que a gente queria mesmo era o Ébano original. Essa distração, minha e da "turma da rua", hoje, covardemente, preferi atribuir ao Estado Novo, Filinto Muller, Getúlio Vargas, e os outros grandes super-vilões que jamais, nem mesmo Dick Tracy, conseguiu botar para ver o sol nascer quadrado (uma frase típica de HQ).
Leio agora, nos jornais, que vem aí, ainda neste verão, lançado pela sempre inovadora (que muitas vezes acaba em besteira) editora Marvel um Homem-Aranha metade negro, metade hispânico. Dois coelhos de uma só cajadada, diria o Coringa em meio a gargalhadas. O repórter Peter Parker, o Homem-Aranha original, de filmes, HQ e espetáculos azarados no teatro, não vai se aposentar. Apenas ceder para uma parte da coleção alternativa da Marvel, a Ultimate Imprint, os serviços de Miles Morales. Quer dizer, é feito a dívida americana e os retardatários direitos civis que só agora chegaram aos "gibis". É só por um pouquinho, pra ver no que dá. Na moita, na moita, uma pequena segregaçãozinha super-retardatária, hem "seu" Stan Lee?
Eu continuo esperando o relançamento do único super-herói que, em fins da década de 30, morreu: o Cometa. Sim, seu irmão continuou seu embate contra as felonias deste mundo cruel. Chamava-se O Vingador e não confundir, por favor, com uma série radiofônica que atendia, ou se ligava, pelo mesmo nome no final da tarde.
Em todo caso, Miles Morales, entre, a casa é sua, fique à vontade.
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