Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Democracia e islã convivem?

Era uma vez um tempo em que a Turquia de Recep Tayyip Erdogan e seu AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento) eram apontados como o modelo ideal para o Oriente Médio e, mais amplamente, para o mundo muçulmano. Afinal, tratava-se de um país de maioria muçulmana que elegia um partido islamita moderado, simpático à democracia e ao livre mercado.

Parecia ser um desmentido à preconceituosa teoria de Samuel Huntington ("Choque de Civilizações"), para quem o islã é incompatível com os valores do Ocidente.

Neste domingo (1º), os eleitores turcos têm uma nova oportunidade para dar razão a Huntington ou desmenti-lo. Ou, como prefere Serkan Demirtas, colunista do jornal oposicionista "Hürriyet", "a Turquia votará ou pela liberdade ou por mais autoritarismo".

Se, como no pleito de 7 de junho, negarem outra vez a maioria absoluta ao AKP, "a perspectiva de um governo de coalizão oferece à Turquia uma oportunidade de revisar sua cultura política e encaminhar o país na direção de uma genuína democracia liberal", como diz Sinan Ülgen, pesquisador do Centro Carnegie para a Europa.

Se, ao contrário, o AKP recuperar a maioria absoluta de que sempre gozou antes da votação de junho último, "a democracia ficará ferida", afirma Tozun Bahcheli (Western University, Ontário, Canadá).

Bahcheli duvida, no entanto, que o ferimento será grave o suficiente para transformar a democrática Turquia em uma ditadura, como em geral são os países de maioria muçulmana.

"Não acho concebível que a Turquia se transforme em um regime como o de Vladimir Putin. Haveria forte reação das ruas", diz ele.

Pesquisa recente do centro de pesquisa Pew sugere que ele tem razão: a maioria dos turcos pesquisados (56%) prefere o regime democrático, contra apenas 36% favoráveis a um líder forte.

Mas, atenção, entre os simpatizantes do partido de Erdogan, os números se invertem: 61% querem mesmo um líder forte em vez da democracia, preferida de apenas 36%.

Como o AKP, segundo as pesquisas, continuará majoritário após as eleições, com ou sem maioria absoluta, o jogo na Turquia não está jogado e, de fato, a eleição acaba sendo uma escolha entre liberdade e mais autoritarismo.

Por isso mesmo, é uma eleição cuja importância transcende as fronteiras do país.

E não apenas pela questão democrática, por mais relevante que esta seja de fato.

Como escreve Asli Aydinstabas (Conselho Europeu de Relações Exteriores), "a Turquia agora parece mais e mais envolvida no atoleiro sírio, com mais de 2 milhões de refugiados e tendo importado a luta entre curdos e Estado Islâmico para dentro de suas fronteiras".

O governo turco passou a atacar mais as milícias curdas que lutam na Síria contra os fanáticos do EI do que o próprio EI, o que tem uma lógica perversa, assim definida pela acadêmico Bahcheli:

"O governo turco vê os curdos politicamente ativos como uma ameaça ainda maior que o EI, porque põem em risco a integridade territorial turca, ao contrário do EI, com todos os seus métodos horrendos."

O voto de hoje gira em torno de tudo isso.

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