Clóvis Rossi

Repórter especial, foi membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot.

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Clóvis Rossi

Quando é proibido sonhar

Se Calderón de la Barca está certo ao dizer que "la vida es sueño", equivale a matar a vida —e não apenas um sonho— a decisão do presidente Donald Trump de levantar a proibição de expulsão dos chamados "dreamers" (sonhadores), as quase 800 mil pessoas que chegaram crianças aos EUA, trazidas por seus pais, imigrantes ilegais.

É verdade que Trump passou para o Congresso a tarefa de aprovar uma legislação que substitua o Daca, editado por decreto executivo de Barack Obama, para fugir ao bloqueio que os republicanos sempre fizeram ao então presidente.

Deu seis meses para que os legisladores atuem, insinuando que, se não o fizerem, ele voltará a tratar do assunto, sabe-se lá como.

Até lá, instala-se o pavor não apenas entre os "dreamers", mas em toda a imensa comunidade de imigrantes, legais e ilegais (calcula-se que os ilegais nos EUA sejam cerca de 11 milhões).

A suspeita entre eles é a de que a decisão de Trump alimenta um "plano supremacista branco para aterrorizar os 'jovens de cor'", como disse Cristina Jimenez, diretora-executiva da "United we Dream", em reportagem da sempre excelente Isabel Fleck, desta Folha.

Não é uma suspeita isolada. No "Times of Israel" desta quarta-feira (6), Jack Schwartz, ex-editor de livros do "Newsday", recua mais de dois séculos, até 1791, para dizer que a primeira lei americana de imigração "abriu suas portas apenas para os brancos".

Completa Schwartz: "Nos mais de dois séculos que se seguiram, nossa nação enfrentou uma batalha entre aspirar aos seus mais nobres ideais ou sucumbir aos seus mais negros impulsos."

Um terceiro fator, o pragmatismo, pode interferir para que os "dreamers" sejam, afinal, protegidos pelo Congresso: Marc Zandi, economista-chefe da Moody Analytics, calculou que, se o Daca for eliminado, a economia dos Estados Unidos seria mais de US$ 100 bilhões mais pobre cinco anos após a revogação.

Simples de entender: "Os beneficiários do Daca são cultural e educacionalmente americanos. Pagam sua própria vida, contribuem com a economia e não dependem de benefícios governamentais", escreve para o "New York Post" Alex Nowrasteh, analista de política migratória para o liberal Instituto Cato.

O número de "dreamers" que cometem crimes —o que leva a eliminá-los do programa— é mínimo: 0,1% do total de beneficiários.

O que incomoda nesse atentado ao sonho americano é que ele serve para pôr em evidência que o Brasil não precisou de um Trump para ofender Calderón de la Barca e sua "la vida es sueño". Há 7.361 pedidos de brasileiros aprovados até hoje, segundo o relato de Isabel Fleck, o sétimo país com maior número de cidadãos no programa.

Desde a ditadura militar e passando pelas sucessivas crises que desnorteiam os brasileiros —a mais recente ainda em desdobramento—, a América passou a ser o sonho do brasileiro, como depôs para Isabel Fleck Bruna Bouhid, 26, há 18 nos EUA: ela gosta do Brasil, mas continua acreditando que é na América que estão "as oportunidades" (de uma vida melhor).

Pobre dos países que matam os sonhos.

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