Denise Fraga

É atriz e autora de "Travessuras de Mãe" (ed. Globo) e "Retrato Falado" (ed. Globo).

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A Marie Farrar de Higienópolis

Crédito: Zé Vicente Ilustração da coluna Denise Fraga

—Ainda existe isso? —foi o que falei ao saber da história da bebê deixada na sacola.

—Como é que alguém faz um troço desse? —o taxista continuou.

Ele não percebeu que em minha pergunta havia um saudosismo qualquer. Vivemos em um mundo tão torto que, de alguma maneira, eu tinha ficado feliz por não ter sido o lixo ou o rio o destino escolhido por aquela mãe. Uma criança numa cestinha deixada na porta de alguém é uma história contada desde que o mundo é mundo e acabara de acontecer de novo, bem ali do meu lado.

Ainda. Apesar da barbárie. Lembrei de "A Infanticida Marie Farrar", poema de Bertold Brecht, e, mais uma vez, agradeci o destino da sacola.

Silenciei diante da indignação do taxista e me pus a imaginar o acontecido: a mãe desesperada escolhe uma rua nobre da cidade para deixar sua criança na esperança que lá more alguém que possa criá-la.
No dia seguinte, minha pequena história se confirmou nos jornais. Com alguns detalhes.

A mãe morava na mesma quadra nobre, no emprego que não podia pensar em perder. Escondeu a gravidez dos patrões porque já morava ali com outra filha, uma menina de três anos. Foi pega porque fez tudo diante das câmeras de segurança do bairro nobre. Inclusive entregou-se, num gesto de mea-culpa, abaixando a cabeça ao reconhecer da calçada, pendurada num poste, a razão pela qual era agora exibida em replay em todos os noticiários.

Apesar da rua vazia daquela manhã de domingo, muitos olhos tinham estado sobre ela. Olhos que definitivamente não seriam capazes de notar seu desespero na imagem desfocada. O desespero de Marie Farrar.

Não paro de pensar nos possíveis detalhes desta história. Queria saber o quanto ela conseguiu também esconder a gravidez da sua outra filha, a menininha de três anos.

Ou será que a tomou como cúmplice? O que será que disse à pequena quando saiu carregando a bebê na sacola? O que pensou? Qual seria o seu final feliz imaginado? Os dias seriam os mesmos se tudo desse certo? Observaria escondida sua filha crescer, brincando na pracinha com a mãe adotiva, sua vizinha endinheirada da rua nobre?

O assunto rodou a semana inteira sem este tipo de detalhe, e a indignação a verbo solto só me fazia voltar a surfar nas palavras de Brecht: "Mas, por favor, não fiquem indignados. Todos nós precisamos de ajuda, coitados". Inclusive para salvar-nos de nossa indignação.

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