Fernando Schüler

Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

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Fernando Schüler

Lula deve quase tudo à política. Nos anos 70 foi fazer política no sindicato, em São Bernardo, e liderou as greves do ABC; na virada dos anos 80 foi fazer política para criar o PT; depois foi fazer política na Constituinte e logo disputar por cinco vezes a Presidência da República. O que se passa agora, com os processos na Justiça, é mais do mesmo. Mobilizar gente, "construir" a narrativa, atiçar a militância, chamar os sem-terra, fazer manifesto, convocar o Chico e arrumar um vídeo do Noam Chomsky. Amassar o barro da política. É o ofício de Lula. O que ele e o partido que criou sabem fazer melhor do que ninguém, no Brasil.

Há um elemento barroco aí. A crença difusa de que a "luta" pode vencer qualquer coisa. A ideia de que "eles" estão tentando nos destruir, e que "nós" precisamos reagir. Ideia perfeitamente banal, mas eficiente. Talvez não funcionasse em uma democracia madura, com um debate público menos passional. Mas no calor latino-americano sem dúvida funciona.

A retórica vai longe. O ativista e colunista Mark Weisbrot, que nunca escondeu suas simpatias bolivarianas, conseguiu publicar um artigo rudimentar no "The New York Times" dizendo que o Partido dos Trabalhadores concedeu autonomia ao Judiciário para "investigar as instituições" e que não se pode esperar lá muita imparcialidade do tribunal da segunda instância, em Porto Alegre. Na lógica do colunista, nossas instituições são meio bananeiras, e parece sugerir que exista uma relação entre tudo isto e o fato de que fomos o último país a abolir a escravidão. Alguém poderia achar isso tudo ofensivo para o Brasil. De minha parte vejo apenas o óbvio: que a imprensa, em qualquer parte, tem lá seus altos e baixos.

O fato é que Lula passou os últimos dois anos testando os limites da Justiça, no Brasil, e conseguiu vitórias importantes. Lidera as pesquisas, reanimou a esquerda e, mais importante, jogou um elemento de dúvida sobre todo o processo jurídico. Dúvida sobre a existência de provas e sobre a imparcialidade dos julgadores. Trata-se da mesmíssima lógica usada na "retórica do golpe", no episódio do impeachment. Nos dois casos, o discurso é simples: nossas instituições não são confiáveis. Confiável é o partido para julgar as instituições e a conduta de seus dirigentes.

É possível especular que o próprio comportamento das instituições criou espaço para esta retórica. Nos tornamos um país em que, de uma hora para outra, alguém pode ser impedido de assumir um cargo público por ter perdido uma ação trabalhista. Parece difícil não perceber que o espaço de subjetivação da Justiça adquiriu bom tamanho hoje no país. É precisamente neste espaço que Lula joga suas fichas. Na ideia de que a política pode, sim, mover a Justiça, de alguma forma.

No fundo, esta é a pergunta em aberto, nestes tempos incertos. Lula já disse muitas vezes que "tem que botar pressão", que "eles têm que ter medo". Senadores do partido insistem que o momento é de guerra e de fazer política além do "campo institucional". Ok, tudo isto pode ser apenas retórica reciclada de movimento estudantil. Intuo mesmo que seja. Mas é um sinal de que ainda temos muito o que caminhar, na consolidação de uma cultura da democracia, no Brasil.

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