João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Toureiros, preguiçosos & decadentes

O leitor é favorável à pena de morte? Imagino que não. O leitor acredita que um toureiro morto na arena tem o que merece? Eis a pergunta fundamental sobre o caso Victor Barrio.

Relembro: dia 9 de julho, nas festas populares de Teruel, na Espanha, o toureiro foi colhido por um touro que lhe trespassou o peito várias vezes. As imagens foram transmitidas ao vivo na tv e o caso provocou comoção no país.

Comoção, vírgula: as "redes sociais" também foram inundadas por defensores dos "direitos dos animais" (mas não dos animais "racionais", presumo) que celebraram a morte do toureiro de 29 anos. O raciocínio era simples: quem mata touros merece ser morto por eles.

Soube agora que uma associação tauromáquica (a Fundación Tore de Lidia) pondera processar todos os autores dessas celebrações macabras. Quem difamar a memória do toureiro terá de responder perante a justiça. Imagino que o caso ainda vai dar que falar.

Dois pontos prévios.

Primeiro ponto: sempre achei as touradas espectáculos grotescos. Conheço os argumentos clássicos dos defensores da lide: a inevitabilidade da morte do animal (seja na arena, seja no matadouro); o diminuto sofrimento dele (por razões neuromusculares que me ultrapassam); e, claro, a "tradição", como se a palavra fosse uma carta de alforria para qualquer barbaridade humana. Atenção aos termos: as touradas são uma barbaridade, não apenas pelo sofrimento gratuito do animal - mas, sobretudo, por serem uma expressão pública do nosso primitivismo existencial.

Segundo ponto: considero ridículo, para não dizer impossível, processar qualquer débil que celebre a morte de um ser humano na arena. Se a justiça de qualquer país democrático pretender criminalizar todas as imbecilidades que existem nas catacumbas cibernautas, não há nenhum sistema judicial que resista à avalanche.

Só que o caso Victor Barrio não é, em rigor, sobre a legitimidade das touradas. É um retrato sobre a forma como os "direitos dos animais" afundam a inteligência de qualquer cristão, promovendo um fanatismo que não conhece limites nem vergonha.

Porque uma coisa é afirmar - com razão - que a morte do toureiro é sempre uma possibilidade para quem escolhe tal carreira. Outra, ligeiramente mais sinistra, é festejar essa morte como uma espécie de punição "poética" pelas maldades cometidas sobre um touro.

E, nesse quesito, regresso ao início: as boas almas condenam a pena de morte em qualquer circunstância (e muito bem). Mesmo quando o criminoso comete o mais nefando dos atos –a morte de outro ser humano.

Esse repúdio pelo castigo capital não funciona quando a vítima deixa de ser um ser humano –e passa a ser um animal. Na hierarquia dos fanáticos, um animal está sempre acima de qualquer pessoa.

O erro de Victor Barrio foi ter entrado na arena para tourear e matar um touro. Se ele tivesse feito o mesmo a um seu semelhante, quantos progressistas estariam a marchar contra a pena de morte para ele?

Tenho amigos que me fazem a pergunta leninista: que fazer? "Que fazer", no caso, significa um dilema qualquer sobre a vida em geral. A minha resposta, 90% das vezes, é a mesma: não faças nada.

Semanas depois, eles regressam, leves e sorridentes, para agradecer o conselho. Não fizeram nada. O problema partiu como chegou. Insensatez minha?

Talvez, talvez. Mas do alto dos meus 40 anos, chego à conclusão triste –triste porque tardia– que "não fazer nada" é a coisa mais difícil que existe. Somos filhos de Atenas. Somos filhos do racionalismo iluminista. "Fazer sempre algo" é uma espécie de maldição existencial que nossos pais filosóficos deixaram para a descendência.

É um logro. Metade das misérias do mundo deixaria de existir se, nos primeiros anos de escola, o professor ensinasse os meninos a serem menos histéricos. E a respeitarem a soberania da preguiça.

Bem sei que a preguiça ganhou mau nome, apesar da descrição bíblica magistral: no princípio, não era apenas o Verbo. Também havia um jardim e dois personagens em posição horizontal.

A humanidade só perdeu esse jardim quando o casal decidiu levantar-se e fazer alguma coisa com um problema inexistente: a árvore do conhecimento. Tudo seria diferente se, confrontados com o fruto proibido, Adão e Eva comentassem apenas: "Deixa lá essa maçã que isto aqui já está bom demais."

E quem fala em assuntos bíblicos, também fala de assuntos mundanos. Penso no século 20. Na tragédia das suas guerras. A Primeira começou quando Gavrilo Princip matou o arquiduque Franz Ferdinand, em Sarajevo.

Então imagino: Princip acorda nesse dia fatal. Sente uma preguiça saudável no corpo. Desliga o despertador, vira o corpo para o outro lado e murmura: "Só mais dez minutos." Haverá coisa mais bela? O mundo salvo pelo "snooze".

Hitler é a mesma coisa. A Segunda Guerra começou com a invasão da Polônia. Mas o que teria sido de nós se Adolf, lembrando os seus dias de vagabundagem em Munique, tivesse pensado no trabalho, na destruição e na sujeira que uma guerra mundial implica?

O escritor Philip Slater tinha razão: as grandes carnificinas requerem grande dedicação. A preguiça, pelo contrário, nunca matou ninguém. Com a exceção do próprio preguiçoso.

E por falar em "não fazer nada": dizem os manuais da especialidade que só existem duas histórias no cânone literário ocidental –a partida do herói e o seu regresso a casa. A coisa talvez funcione com Homero e todos os seus herdeiros.

Mas existe uma terceira categoria em que o herói, ou o anti-herói, não parte nem regressa. Em rigor, ele não sai do lugar. Até ao momento em que a decadência do corpo se junta à decadência do espírito.

"Oblomov", o clássico de Ivan Goncharov, é talvez a maior das epopeias anti-homéricas que já li (superior ao "Bartleby" de Melville). Mas é também um retrato cômico e trágico do velho pecado da acídia –esse torpor da alma que rouba ao ser humano qualquer vitalidade física, espiritual, moral, estética, sentimental.

Oblomov, o aristocrata que raramente sai do quarto, contempla o seu naufrágio lento. E, ao contrário do que escrevia o poeta, não há ali qualquer prazer em não cumprir um dever –o hino do preguiçoso. Encontramos apenas a consciência amarga de uma vida não vivida, como se um qualquer músculo interior tivesse sido atrofiado pelo tempo, pela educação ou pela covardia.

Sou ocioso por natureza. Preguiçoso, também. Mas quando li "Oblomov", senti o arrepio próprio de quem gosta de caminhar à beira do abismo. E, pela primeira vez, decide olhar para baixo.

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