João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho

Os filmes da década

Que se passa com Hollywood? Que se passa com o cinema americano em geral? As perguntas são do emérito David Thomson na última edição da "Intelligent Life", a revista inteligente da sempre inteligente "The Economist".

Thomson está tão desesperado com a mediocridade cinematográfica atual que propõe: Hollywood deveria demolir as famosas letras brancas que contemplam Los Angeles. Hollywood é hoje uma mentira, dominada por computadores, efeitos especiais e mediocridade narrativa. Hollywood é um insulto à memória dos "anos dourados".

É difícil discordar de Thomson. Não sou propriamente um Matusalém cinéfilo, admito, mas suspeito que a coisa tem piorado dramaticamente: há duas gerações (mínimo), havia sempre meia dúzia de obras por ano que justificava o esforço; hoje, é difícil encontrar uma que seja. Ou, dito de forma ainda mais cruel, é difícil encontrar um filme em sala que justifique o abandono da nossa sala.

"Mad Men", "A Sete Palmos", "Boardwalk Empire": haverá algo de remotamente comparável nas produções regulares de Hollywood? David Thomson duvida.

Eu também. E, em exercício especulativo e bem ocioso, pergunto à memória quais os filmes da última década que merecem ser salvos no dia do Apocalipse.

Escolhi um filme por ano, para facilitar as contas. Esquecimentos, sempre haverá. Injustiças, também. Mas esses são os meus dez - e todas as discórdias serão bem vindas. Confira, leitor.

2000
"Wonderboys - Garotos Incríveis" (Curtis Hanson)

Não sei quantas vezes assisti a "Wonderboys - Garotos Incríveis". Umas dez. Umas vinte. Não consigo parar. Estou como o Prof. Tripp (Michael Douglas), que também não consegue: há sete anos que não há livro novo na costa porque o homem escreve sempre, e sempre mais, sem fim ou propósito que se veja. A aluna, uma lolita com cabeça e corpo para fazer estragos, é certeira na sentença depois de ler o gigantesco manuscrito: o livro não faz escolhas. O livro?

Melhor dizer: o Prof. Tripp não faz escolhas. Nem no livro, nem na vida - e não conheço melhor filme sobre a natureza do impasse: esse baloiçar agónico entre caminhos que nos bloqueiam terrivelmente.

E os bloqueios, a começar pelos criativos e a terminar nos sentimentais, não obedecem sempre à imagem-cliché do artista torturado pela página em branco. Curtis Hanson acerta no alvo e filma o problema do avesso, como ele merece ser filmado: os verdadeiros bloqueios são aqueles que tentamos resolver por excesso. Pela porta macabra da impermanência - uma porta que abre sempre para outra, e mais outra, e outra ainda, um labirinto que nos atira de volta para o mesmo lugar.

Por isso rio sempre, ou choro sempre, quando o interminável manuscrito se perde numa sequência desastrada que é pura "slapstick comedy". Vemos o editor de Tripp (divino Robert Downey Jr.) a tentar salvar o monstrengo do naufrágio e, na escuridão da sala, torcemos baixinho: deixa ir, deixa ir.

2001
"In the Bedroom - Entre Quatro Paredes" (Todd Field)

Eis um caso em que a tradução do título atraiçoa a natureza do filme. "In the Bedroom", "Entre Quatro Paredes"?

Errado. "Bedroom", ensina Matt (Tom Wilkinson), é o nome das armadilhas aquáticas para pescar lagostas. Mas o fundamental da explicação vem a seguir: as armadilhas só comportam dois elementos, nunca três. Quando existe um terceiro elemento, acrescenta Matt, algo está errado.

"In the Bedroom" é a tragédia do terceiro elemento: o ex-marido que ronda a felicidade do jovem casal e que, no limite, a destrói; o ex-marido que, depois do crime, continua a rondar a paz possível dos pais enlutados e que a destrói também. Como responder a tamanha injustiça, sobretudo quando a justiça dos homens se mostra perdulária?

Shakespeare ensina-nos, com palavras eloquentes sobre a natureza humana, que não existe crueldade gratuita sem vingança brutal. Mas "In the Bedroom" não é uma tragédia aristocrática. É uma tragédia familiar e privada, e por isso anti-heróica: a vingança abate-se sobre o assassino; mas abate-se de uma forma tão violentamente banal - o pai do rapaz dispara à queima-roupa e murmura um "não aguentava mais" que assombra pela sua fragilidade - que perguntamos seriamente se a vingança fechará o ciclo da danação.

Duvidoso. Quando, na peça do bardo, Macduff chega ao castelo para decapitar Macbeth, não duvidamos por um minuto que as noites seguintes serão dormidas em paz. Em "In the Bedroom", a primeira madrugada de Matt depois da vingança é o prenúncio de uma longa insónia.

2002
"The 25th Hour - A Última Noite" (Spike Lee)

A sequência é modesta na arquitectura operática da obra; mas quando assitimos a ela, é impossível não sentir um buraco a abrir no peito, comparável ao buraco real do "ground zero" em Nova York.

Acontece quando a empregada do bar convida Monty (Edward Norton) para o seu aniversário. Conversa banal. "Aparece no domingo", diz ela, ou coisa do género. Ele nada responde. Sorri, agradece. Lindo menino. Responder o que, ou para que?

Nós sabemos; ele sabe; os amigos sabem que o domingo lhe está interdito. Não há essa hora extra de que fala o título - a hora das segundas oportunidades, a salvação misericordiosa a que até os cachorros feridos têm direito. Antes de domingo chegar, Monty estará na prisão - e, com ele, toda a vida que jamais terá.

Não é por acaso que a polícia chega para o prender quando Monty e Naturelle (Rosario Dawson) conversam sobre o futuro - e sobre os filhos que (não) terão.

E não é por acaso, uma vez mais, que esse futuro regressa na sequência final, na viagem voluntária para o cárcere. É o pai de Monty quem dirige o carro e nos dirige a nós para "uma vida que esteve quase para não acontecer". Seria a vida do filho se este, optando pela fuga na última hora, optasse também por uma vida clandestina e invisível. Uma vida que só existe como sonho, ou desejo.

Spike Lee, seguindo os grandes romancistas do século 19, não precisou de ser literal para evocar a tragédia da sua cidade recentemente massacrada. Limitou-se a filmar, no destino de Monty, todos os destinos que só existem como fantasmagóricas impossibilidades.

2003
"Lost in Translation - Encontros e Desencontros" (Sofia Coppola)

Se tens medo da solidão, não te cases. A frase é de Tchékhov, mas foi Sofia Coppola quem a filmou ao filmar o encontro de Bob (Bill Murray) com Charlotte (Scarlett Johansson). Um encontro marcado desde os planos iniciais: Charlotte está deitada na cama, de costas para nós; Bob, recém-chegado a Tóquio, está recostado no assento traseiro do táxi.

Duas almas em posição horizontal, ou quase - um estado existencial, e não apenas físico, como veremos nas sequências imediatamente seguintes. Bob não consegue dormir; Charlotte também não. Cansaço, insónia. Inquietude. Em cinco minutos, dois estranhos que ainda não trocaram palavra - e já sabemos tudo sobre eles.

A resposta é Jack (Thomas Haden Church), o improvável amigo. Miles é ansioso mas intelectualmente afinado, apesar do romance que sai-e-não-sai. Jack é o avesso: relaxado e, para usar a expressão elitista, um filistino. Jack, ao contrário de Miles, não se importa de beber "the fucking Merlot".

Mas a amizade, e em especial a amizade masculina, não é uma questão hormonal ou cerebral. É coisa infantil e cúmplice, que não conhece idades, porque o cimento que a une é intemporal. E tem nome: mulheres.

Uma pergunta: de que falam as mulheres quando estão entre mulheres? Provavelmente, de homens. Provavelmente. No caso dos homens, não restam dúvidas: falam de mulheres. Como diria o outro, falam das mulheres passadas, presentes - e das que estarão para vir.

O melhor de "Sideways - Entre Umas e Outras", um retrato melancólico sobre a amizade entre os machos, está nas conversas dos amigos quando as fêmeas saem do enquadramento. Está lá tudo: as estratégias de abordagem; as mentiras pegadas e combinadas; as ameaças ferozes se o outro não ajuda na empreitada; e, quando a empreitada desaba e o naufrágio é certo, o braço amigo que nos resgata do buraco.

Alguém dizia que, depois de assistir a "Sideways", nenhuma mulher confiará nos homens da mesma forma. Talvez não. Mas aposto que os amará com redobrado afecto - e, já agora, com redobrada compaixão. Um brinde a elas!

2005
"A History of Violence - Marcas da Violência" (David Cronenberg)

Vem nos livros: quando os maus espíritos entram na tribo, é preciso enfrentá-los e exorcizá-los. Tom (Viggo Mortensen) não é exceção: o seu passado de violência regressa inesperadamente para destruir a sua tribo. A tribo reage: afasta-se de Tom, renega-o, vê nele o portador da epidemia e da contaminação. Tom sabe que precisa de partir, repor o equilíbrio perdido - e só então regressar.

Tom parte, Tom regressa. Mas só depois de matar o irmão, destruir o seu passado selvagem e, simbolicamente, purificar-se nas águas do lago. A tribo está pronta para o receber e reintegrar no velho círculo de confiança. Um prato na mesa. Comida no prato. O olhar compassivo da mulher.

"A History of Violence - Marcas da Violência" não é uma história de violência; é, para sermos precisos, uma história sobre a dimensão primordial da violência, que nenhuma identidade "civilizada" será capaz de apagar completamente.

Podemos lamentar essa fraqueza essencial da natureza humana: a ideia sinistra de que o médico também alberga o monstro. David Cronenberg prefere acreditar, e eu com ele, que há momentos da existência em que só o monstro é capaz de salvar o médico.

2006
"Ask the Dust - Pergunte ao Pó" (Robert Towne)

Quem nunca pensou em viver num quarto de hotel, na baixa de Los Angeles, e escrever o grande romance americano, que atire a primeira pedra. Esse é o desejo de Arturo Bandini (Colin Farrell): ser rico e famoso, e apagar a vergonha que sente das suas origens e do seu próprio nome. Mas como escrever sobre a vida quando a vida passa lá fora, longe dele e inacessível para um pobre como ele?

H.L. Mencken, o editor, responde-lhe em carta ficcional. Uma carta tão sábia que poderia ter sido escrita pelo próprio Mencken: todos os escritores têm um déficit de experiência porque não podem estar em dois sítios ao mesmo tempo. O segredo, diz-lhe o sage de Baltimore, é fazer mais com menos. É amplificar todas as experiências com verdadeira intensidade romanesca.

Crédito: Divulgação A atriz Salma Hayek e Colin Farrel, durante o filme "Pergunte ao Pó"
A atriz Salma Hayek e Colin Farrel, durante o filme "Pergunte ao Pó"

Não sei se Arturo entende o conselho à primeira. Mas ele entenderá à segunda: depois de se apaixonar por Camilla (Salma Hayek), uma mexicana com igual vergonha das suas raízes. É o arranjo perfeito: duas almas que rejeitam a sua identidade e que encontram no outro o reflexo dessa mesma identidade.

E a pergunta, formulada pelo diretor Robert Towne, é saber até que ponto somos capaz de sobreviver ao ruído do mundo quando esse ruído desperta velhos medos e reabre velhas feridas que nunca cicatrizaram verdadeiramente. Como confessa Camilla, em momento de trégua entre ambos, a felicidade deveria ser coisa simples: vivermos num lugar seguro e amarmos alguém sem termos vergonha disso.

A beleza démodé de "Ask the Dust - Pergunte ao Pó" está na forma elegíaca como evoca tantos equívocos e um doloroso desperdício.

2007
"Into the Wild - Na Natureza Selvagem" (Sean Penn)

Os homens nasceram livres; e, no entanto, encontram-se aprisionados em todo o lado. Foi Rousseau quem o escreveu no mais poderoso e subversivo libelo da filosofia política moderna. Fato: Rousseau nunca advogou o regresso a esse estágio idílico, em que os homens viviam em comunhão perfeita, sem os dramas e os egoísmos próprios da "civilização".

Mas o mal estava feito: ao retomar a grande tradição utópica do Ocidente, Rousseau apresentava a evidência de um "crime". O "crime" da sociedade política sobre a natureza benigna dos homens.

Não houve revolucionário ou torcionário que, consciente ou inconscientemente, não tenha tomado esse "crime" como uma afronta pessoal, procurando redimir a sociedade das suas mentiras burguesas.

Mas "Into the Wild - Na Natureza Selvagem", estranhamente dirigido por Sean Penn em raro momento de lucidez, prefere uma tela mais restrita e apresenta-nos Chris McCandless (Emile Hirsch), aluno promissor, filho da classe média afluente, e que desenvolve aos nossos olhos a mentalidade puritana de um fanático.

A mesma cegueira ideológica alimentada pela leitura literal dos evangelhos seculares; a mesma intolerância perante as falhas e as fraquezas de terceiros; a mesma indiferença perante a generosidade e o afecto dos outros; a mesma busca de um estado incorrompido e incorruptível, que ele julga encontrar no Alasca; e a destruição final, no caso a sua, quando a utopia prometida degenera, como sempre degenera, no horror e na morte.

2008
"Two Lovers - Amantes" (James Gray)

O filósofo John Armstrong, em ensaio recente sobre a "filosofia da intimidade" ("Conditions of Love", Penguin, 166 págs.), questiona por que motivo a arte sempre se ocupou do sublime - entendido aqui como experiência emocional que nos permite subir ao cume da existência - para esquecer, ou ignorar, o seu contraponto fundamental.

Crédito: Divulgação Os atores Gwyneth Paltrow e Joaquin Phoenix em cena de `Amantes' (2008), de James Gray
Os atores Gwyneth Paltrow e Joaquin Phoenix em cena de `Amantes' (2008), de James Gray

O nome grego desse contraponto é "katabasis": significa o momento em que "vamos abaixo"; em que nos confrontamos com a fragilidade da nossa condição; em que abandonamos a complacência (e a indiferença) onde reinamos todos os dias para aceitar uma lição de humildade.

Sem "katabasis", escreve Armstrong, nenhuma relação sobrevive. Porque nenhuma relação se revaloriza: é fácil amar quando se paira nas nuvens. Mas é quando descemos delas que as qualidades do outro adquirem a sua verdadeira e necessária tonalidade. Ainda nas palavras de Armstrong, não é o sofrimento que nos faz apreciar o amor. O sofrimento apenas destrói a nossa vaidade para despertar o nosso respeito pelo amor.

"Two Lovers - Amantes" é essa lição de humildade. E Leonard (Joaquin Phoenix) é o objecto dessa lição: amado por Sandra (Vinissa Shaw) mas iludido por Michelle (Gwyneth Paltrow), ele aprenderá, depois da ilusão desfeita, que Sandra espera ainda por ele. Como prémio de consolação?

Longe disso. Quando vemos Leonard no final, junto às águas onde tentara o suicídio no início, sabemos que ele será salvo novamente. Não pela generosidade de terceiros; mas pelo reconhecimento, doloroso e grato, dessa mesma generosidade.

2009
"A Serious Man - Um Homem Sério" (Joel e Ethan Coen)

É a fé que salva Job; ou, para sermos prosaicos, a submissão total à vontade de Deus, mesmo quando tudo desaba em volta sem explicação ou sentido.

Larry Gopnik (Michael Stuhlbarg), em "A Serious Man - Um Homem Sério", não tem a mesma fortaleza moral. Mas ele tenta. O casamento está em ruínas? Ele aceita. O amante da mulher é insuportavelmente amigável? Ele aceita. O irmão, jogador compulsivo, é também um hipocondríaco compulsivo? Ele aceita. O filho, no próprio dia do seu bar mitzvah, aparece sob influência? Ele aceita.

E ainda existe um aluno relapso que insiste em suborná-lo para conseguir uma melhor classificação - e isso ele não pode aceitar: nem o dinheiro, nem a ousadia. Pelo menos, até ao momento em que a soma dos problemas o convidam a cruzar a linha. E, quando a linha é cruzada, este Job moderno não terá a recompensa do antigo.

"Um Homem Sério" é uma comédia séria sobre a essência do Judaísmo. E não deixa de ser revelador que, na cultura popular corrente, sejam sobretudo judeus seculares, para não dizer ateus, os principais exegetas dessa essência.

Woody Allen é um caso. Joel e Ethan Coen são outro. E ambos, confrontados com uma cultura de provação permanente, parecem repetir a inquietação central que move Larry de rabino em rabino: de que vale ser o povo eleito quando não sabemos nada do que se passa?

É a pergunta que vale 1 milhão de dólares - e 4 mil anos de história.

2010
"Greenberg" (Noah Baumbach)

Roger Greenberg (Ben Stiller) não sabe nadar: entra na piscina, tenta cruzá-la, mas nadar não é o seu forte. Nem nadar, nem trabalhar. Nem viver. Nem amar. Um náufrago, enfim, que regressa a Los Angeles, depois de uma ausência longa e mentalmente perturbada, para tomar conta da casa do irmão. E que descobre Roger?

Que todo mundo já chegou a um porto qualquer. Os amigos arrumaram os sonhos juvenis de grandeza e celebridade (musical); a ex-namorada é agora ex-mulher de alguém e mãe a tempo inteiro - e não tenciona regressar ao passado. Porque só Roger ficou no passado - um fóssil de ressentimento, temor e misantropia.

Mas Los Angeles, a cidade de todas as redenções cinéfilas, tem um presente para ele, no duplo sentido da palavra: Florence (Greta Gerwig), a "personal assistant" do irmão, e um especimen tão desajustado quanto Roger. É o inicio de uma história de amor, ou de uma espécie de história de amor, que irá testar as atrofias evidentes de dois seres à deriva.

No cinema americano recente, Noah Baumbach é o mestre das dissonâncias: nenhuma palavra, nenhum gesto e nenhum afecto acontecem da forma correcta, no tempo correcto.

Mas "Greenberg" refina e leva ainda mais longe esse universo "fora de foco", conferindo a cada personagem a dose certa, ou incerta, de torpor emocional, sarcasmo elegante - e inusitado sentimentalismo. Não conheço melhor homenagem à matéria imperfeita de que somos feitos.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.