Leão Serva

Jornalista, foi coordenador de imprensa na Prefeitura de São Paulo (2005-2009). É coautor de "Como Viver em São Paulo sem Carro".

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Leão Serva

Como as baratas, a democracia americana vai sobreviver a Trump

Para um jovem estudante brasileiro contra a ditadura militar, assistir à posse de Ronald Reagan, em 1981, tinha um gostinho perverso. Me senti infiltrado naquela massa direitosa e nacionalista que, cheia de orgulho, enchia as ruas de Washington DC, naquele 20 de janeiro ensolarado e muito frio. Quatro décadas e meia depois, vejo a posse de Donald Trump com o temor que muitos sentem no mundo inteiro, mas com a sensação de quem já viu acontecer algo semelhante e seu contrário... E o mundo não acabou, nem mesmo a democracia americana.

A primeira coisa que me chamou atenção ao ver o presidente de perto foi a quantidade de maquiagem, cor-de-rosa, que ele ostentava. E o sorriso calculado que era idêntico ao impresso nos milhões de cartões postais que tomavam a cidade: o ex-ator e político era um simulacro de si mesmo, não parecia humano, de verdade.

Outra surpresa foi a quantidade de baratas na capital. Elas são pequenas e o aquecimento nos prédios mantém estável seu ciclo de vida, evitando o sumiço normal no inverno. Por isso, aparecem em todo canto. "Devem estar na Casa Branca e até mesmo no Salão Oval", pensei, enquanto o carro aberto passava com o presidente-cor-de-rosa, de pé, acenando para a multidão (Reagan não desfilou a pé pelas ruas , como Trump).

Com um discurso nacionalista e conservador, Reagan venceu o presidente que tentava a reeleição, Jimmy Carter, até hoje uma figura prestigiosa, mas um fiasco eleitoral: o país recém havia superado a ressaca da queda de Richard Nixon e vivia a profunda crise econômica provocada pela crise do petróleo (1973), que aumentou preços, elevou a inflação e ameaçava quebrar a indústria automobilística local sem que o governo desse sinais de ter a receita de superação.

No front externo, Carter acumulava sinais caros à esquerda, mas vistos como ameaça pela direita. Tinha pressionado a ditadura brasileira em defesa dos direitos humanos, negociado avanços na relação com Cuba (quase 40 anos antes de Obama), assistido sem intervir a vitória da guerrilha na Nicarágua e os avanços da esquerda armada em El Salvador. Com a vitória de Reagan, todos sabiam que as ditaduras da América Central ganhavam um forte incentivo (de fato, em poucos meses, com apoio do novo governo americano, o governo salvadorenho reverteu as conquistas rebeldes).

Aquele foi o tempo do nascimento da expressão "fundamentalismo islâmico", que voltou a aparecer agora no discurso de posse de Trump: tinha acabado de acontecer a revolução iraniana , liderada pelo Aiatolá Khomeini, com forte conteúdo antiamericano, que manteve como reféns, por vários meses, uma série de funcionários da embaixada norte-americana em Teerã.

Reagan usou o episódio para imputar fraqueza a Carter. Misturou ao discurso nacionalista um tom armamentista de reação à escalada comunista no mundo. Aproveitou o sucesso do filme "Star Wars" (1977) para lançar o projeto "Guerra nas Estrelas", que criaria um escudo espacial em órbita estacionária e permitiria destruir com raios laser os eventuais mísseis nucleares soviéticos. Era algo cinematográfico, que tocava fundo a alma americana, mexia com o orgulho e remetia a tecnologias até então inimagináveis. Uma ideia fixa me perseguia: "Como podem querer guerrear no espaço se nem as baratas eles conseguem destruir?"

A vitória do candidato republicano na eleição de 1980, como a de agora, provocou uma verdadeira ressaca entre os democratas e a esquerda norte-americana, ali chamada "liberal". O fenômeno Donald Trump tem muitas semelhanças com Reagan, a começar pelo fato de os dois tomarem posse aos 70 anos, cada um batendo o recorde de presidente mais idoso da história.

Ambos também foram simpatizantes do partido democrata e depois se converteram em republicanos; já haviam tentado candidaturas presidenciais sem sucesso antes de alcançar a vitória; e alicerçaram a imagem política em carreiras de sucesso na indústria do entretenimento (Reagan foi ator de cinema e depois passou à TV; Trump foi apresentador do reality show "O Aprendiz").

Há diferenças, imensas, claro. Desde logo, Reagan tinha a experiência política que falta a Trump: fora presidente do influente sindicato de atores de Hollywood e, depois, governador da Califórnia por dois mandatos; mas era um político diferente no partido, tanto que sua marca principal, ao assumir o governo do Estado mais rico do país, foi aumentar impostos, contra o discurso tradicional dos republicanos.

Como fez Trump ao assumir a presidência, Reagan reverteu medidas importantes de Carter, como o avanço na relação com Cuba, e adotou programas de redução de impostos e incentivo à indústria americana (no caso, militar). A administração deu grande impulso à economia do país, que voltou a crescer de forma acentuada. Foi tão bem-sucedido que fez do vice o sucessor, George Bush pai, em 1988, reforçando a impressão entre os democratas de que seu mundo tinha acabado.

"No meio do caminho desta vida" voltei a testemunhar a resistência das baratas de Washington DC, quando Bill Clinton iniciou, em 1992, sua campanha contra o presidente George Bush, pai, que de início parecia tão improvável quanto a de Reagan (presidentes dos Estados Unidos são normalmente reeleitos, por isso a oposição tende a lançar candidatos mais fracos, enquanto os mais fortes se preservam). Clinton incendiou a convenção democrata com um discurso que repetia o bordão "It's time to change America", e garantiu a vitória. O mundo renascia para a esquerda americana.

Não presenciei o revertério da controvertida vitória de George W. Bush no colégio eleitoral, em 2000, e nem a surpresa da eleição do primeiro presidente negro, Barack Obama, oito anos depois. Mas os câmbios que representaram devem servir de garantia aos mais pessimistas: apesar das mudanças de curso, no cenário mais provável, a democracia americana vai sobreviver. Como as baratas de Washington.

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