Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Esta tem barbas

Eu nunca cofiei. O leitor conhece o gesto; acontece muito, sobretudo nos romances: certa personagem põe-se a pensar enquanto cofia a barba.
Fora dos livros cofia-se menos. E, na minha vida, não se cofia de todo: eu não tenho barba.

Não posso cofiá-la enquanto penso, e talvez isso explique que eu pense pouco e mal. É uma barba fraca e mal semeada. É, digamos, uma barba de senhora. Mais vale cortar tudo.

Crédito: Luiza Pannunzio /Editoria de Arte/Folhapress

No entanto, a barba é o documento da virilidade. A barba distingue o rosto masculino do feminino. É ela que anuncia: eis um homem. Nesse sentido, ter barba é usar o sexo na cara. É uma indecência, um atentado ao pudor.

Por outro lado, se isso é verdade, então fazer a barba é lutar contra uma força poderosa. Não admira que seja cada vez mais difícil.
Eu ainda sou do tempo em que a gilete só tinha uma lâmina. Bastava uma lâmina para cortar o pelo.

Depois eles inventaram a gilete com duas lâminas. Os comerciais mostravam o que acontecia: a primeira lâmina só levantava o pelo, a segunda é que cortava o pelo. E depois veio a de três lâminas: a primeira levantava o pelo, a segunda cortava o pelo, e –quando o pelo pensava que já podia relaxar– vinha a terceira lâmina e ainda lhe dava mais um golpe.

A gilete que tenho hoje possui cinco lâminas e um complexo sistema hidráulico que acompanha todas as irregularidades do meu rosto, gorando os planos dos pelos que se abrigam debaixo de uma mandíbula, ou se escondem na curva do zigomático.

Guerreiros de vários tempos e lugares mataram inimigos bem poderosos fazendo uso de uma lâmina apenas, durante milênios. Uma espada foi chegando. Mas, em menos de trinta anos, a gilete ganhou quatro lâminas e uma suspensão com amortecedores. O pelo é um adversário astucioso que, pelos vistos, vai aperfeiçoando a resistência.

A minha hipótese é esta: a barba também assiste aos comerciais. E os pelos, provavelmente, conversam. "Você viu aquilo, amigo? A primeira lâmina só levanta." É óbvio que vão ficando mais sabidos. E, cada década que passa, precisamos de mais uma lâmina para os surpreender.

Não tenho a certeza de que esses raciocínios façam sentido. Vou deixar crescer a barba, pensar no assunto enquanto a cofio, e voltaremos a falar.

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