Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Ruy Castro

Laurinda, Olivia e Adquira

Crédito: Gabo Morales - 18.fev.2011/Folhapress SÃO PAULO, SP, BRASIL, 18-02-2011: Máquina de cartões de crédito e débito no Serviço Funerário de São Paulo, no Cemitério da Lapa, em São Paulo (SP). (Foto: Gabo Morales/Folhapress, 5159, MERCADO)
Máquina de cartões no Serviço Funerário de São Paulo

Há tempos ("A pranteada senhora", Painel, 4/11/2017), falei aqui de como, ao ler os anúncios funerários do "Globo", pensei ver a comunicação do falecimento de uma senhora chamada Adquira Carneiro Perpétuo.

Não sabia quem era, mas aqueles sobrenomes me diziam alguma coisa —talvez fosse a mãe de um antigo colega de faculdade ou amigo. A curiosidade aumentou quando, pelas semanas seguintes, sucessivamente, o anúncio voltou a sair— e não eram convocações para a missa de sétimo ou 30º dia. Era como se dona Adquira morresse toda semana e cada morte justificasse um anúncio.

Na época, por falta de espaço, não pude falar sobre a curiosidade que seu nome me despertou. Adquira Carneiro Perpétuo me lembrava Laurinda Santos Lobo, protetora das artes no Rio dos anos 1910 e 1920 e por cujo "salon", em Santa Teresa, passaram Caruso, Nijinsky, Isadora Duncan e outros grandes do canto e da dança. Lembrava-me também Olivia Guedes Penteado, sua correspondente paulista, que vivia arrastando Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral para banquetes pela Europa antes que eles aderissem à antropofagia.

Donas Laurinda e Olivia eram mulheres ricas, finas e com paixão por artistas. A cultura brasileira lhes deve muito. Eram de um tempo em que alguns membros da nossa elite reservavam parte de seus ganhos para contribuir para o aprimoramento nacional. Talvez dona Adquira estivesse nesse caso.

E só então caiu-me a miserável ficha. Não havia nenhuma dona Adquira. Alguém estava apenas oferecendo pelo jornal um carneiro perpétuo no Cemitério São João Batista. E dava até o valor: R$ 60 mil. Só sei que, desde então, o carneiro deve ter sido adquirido, porque o anúncio nunca mais saiu.

Se, sem querer, contribuí para esta venda, tudo bem. Mas eu preferia que dona Adquira tivesse existido.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.